O cinza colorido (Adeus, Bruce!)

 

Marcus Vinicius Batista

O estalo no chão e o grito de Beth vieram do quarto. Só me lembro que saltei do sofá e, na imagem seguinte, Bruce estava em meus braços, enquanto Beth se vestia aos prantos. Bruce respirava em intervalos mais distantes uns dos outros. Beth repetia: “Ele caiu, caiu”.

Em menos de dez minutos, estávamos na clínica. O veterinário Luiz Carlos nos esperava de prontidão. Ele acelerou o passo com Bruce no colo em direção a uma sala no final do corredor. Ao vê-lo sumir, já sabia: Bruce estava morto! O coração dele parara em meus braços, lá em casa, algo que me sinto incompetente para descrever. Não desejo escrever. Me perturba avançar nos detalhes.

Beth se sentou no escritório ao lado da recepção. Eu trouxe um copo d’água, placebo para uma dor incorrigível. Eu tentava acalmá-la e jamais transparecer meu pavor, a grudenta sensação de que ele não voltaria daquela sala sozinho.

Conversamos com meu sogro e com minha filha Mariana por telefone. O veterinário abriu a porta com aquela expressão que prescinde de palavras. Eu e Beth, separadamente, fomos à sala do fundo para nos despedirmos. O que ela disse a Bruce? O que eu conversei com ele? Nunca perguntaremos um ao outro. 




Acabava o mês que mudou nossa relação com gatos. Daquela noite de segunda-feira em diante, Felino e Magriça seriam animais diferentes, nós nos tornamos outra gente, o relacionamento ganhou novos contornos de proximidade não combinados, percebidos pelo olhar, pelos gestos mínimos.

Levei mais de três meses, não consigo precisar a data, para escrever sobre Bruce. O nome era coerente com o homenageado. Bruce era a prova felina da minha admiração por The Boss, Bruce Springsteen.

O bichano era o demônio em dois acordes. Miava alto em nossos ouvidos antes da sete da manhã. Insistia em dormir entre nós como um filho pequeno. Subia nas costas do gato alfa da casa, enfrentando a autoridade com deboche. Comia a ração dos parceiros. Urinava na cama, tomava uma dura, tirava Beth do prumo, mas mijava no mesmo endereço dias depois, se a porta fosse fechada. Brincava até acabar a pilha. Apagava como os brinquedos do antigo comercial de TV da Duracell. 





Bruce veio parar em casa graças a três mosqueteiros. O primeiro foi minha filha que, de tanto ouvir Beth falar do sonho de ter um gato cinza, nos avisou quando apareceram nove filhotes na escola dela. Um deles era cinza.

A segunda mosqueteira foi uma das professoras de Mari, que levou Bruce para o Itararé, em São Vicente, onde mora. Ela o alimentou por dois dias até que pudéssemos apanhá-lo. A tríade se completou com Cid, que se dispôs a nos levar, de casinha em mãos, até a professora e acolher Bruce até que chegasse no lugar onde reinaria. Nenhum deles apostaria no impacto do novo hóspede, muito menos no desfecho de uma vida em curta-metragem.

O tempo foi necessário para dar um grau de racionalidade à perda. Bruce se tornou assunto menos frequente, mas lembrança constante quando testemunhamos estripulias dos dois gatos que nos permitem morar no apartamento que financiamos.

Quando apareceu, Bruce era a chance que não apareceria novamente. Não pela cor, mas pelo modo como transformaria nosso cotidiano e pelo modo como se despediu de nós.

Naquela noite de segunda-feira, depois da despedida na clínica, voltamos para casa a pé. Cid e Mari, amigos de horas difíceis, foram em casa e aceitaram a missão utópica. Consolar diante da morte é necessário e inútil ao mesmo tempo. Acima de tudo, necessário.

Eu e Beth passamos dias sem conseguir conversar sobre Bruce. Os gatos de casa repousaram mais do que o normal. Creio nesta forma de luto. Felino, o macho que se transformou em mentor, dormiu dias nos lugares preferidos pelo gato cinza pentelho.

Hoje, Bruce é uma lembrança poética. Eu e Beth rimos quando os enxergamos em outros. Sorrimos quando pensamos em certos espaços de casa onde ele mandava. Ela não se diz pronta para ler este texto, mas deu um sorriso afetuoso quando localizou um vídeo dele.

Nós só fechamos a cara quando alguém nos sugere outro gato. Bruce, assim como todos os seres que alteram vidas, são únicos; logo, insubstituíveis.


Comentários

Glauco Braga disse…
Caro Marcão,

Sinto muito pela perda do Bruce. Sabe, tenho oito gatas, todas SRD, adotadas em situação de abandono. Recentemente, vieram para aqui três irmãos (dois machos e uma fêmea). Eles foram encontrados fechados num saco plástico para morrer no lixo. Vieram pra minha casa e foram amamentados e cuidados. Um já foi doado e temos mais um machinho, creme, que precisa de um lar. A irmã vou ficar com ela. Pense e me fale. Um abraço, Glauco
Anônimo disse…
Uma coisa que a vida me ensinou é que o luto é eterno. Não se trata daquela dor que parece que vai acabar com a gente quando ocorre, mas a saudade imensa que sentimos depois. Sempre tive gatos e apenas um cachorro, o Peter, que me foi retirado ainda criança pelos meus pais, sem que eu tivesse qualquer poder de decisão sobre isso. Ler sobre o Bruce me fez lembrar de cada um deles, de cada loucura que eu e minhas irmãs fizemos para ficar com eles: o Tande, envenenado pelo vizinho e que fui quase coagida a não denunciá-lo ou ele seria preso (crime inafiançável) e era pai de 3 filhos pequenos. A July, que como se imagina, chegou neste mês. Uma SRD que parecia uma siamesa louca, que me foi roubada por um vizinho. O mesmo tentou me roubar a Cléo, outra SRD que parecia siamesa, mas nessa época já tinha outra gata em casa, a Bela, que também respondia como Sargentona. Aquele dia descobri que gatos são excelentes detetives, pois ela me indicou onde a irmã por afinidade estava e o vizinho ficou horrorizado com a garota louca que invadiu sua casa para o resgate. Me lembrei também da Yasmim, uma gata toda preta, que minha mãe deixou a gente ficar porque temia que fizessem maldades com ela. Nesse dia descobrimos que ela passou a gostar dos felinos que transitavam pela casa e da Kitty, que nasceu com apenas três patas. Sim, ela pôde ficar em casa por conta da condição. Foi uma gata que me ensinou que a deficiência estava mais em mim que nela. A minha deficiência era vê-la como as outras, era só o que ela queria. Depois que entendi, sua vida ficou bem mais fácil. Todos que compartilho a história agora já se foram, fisicamente, mas estão comigo sempre, na lembrança. Seja pela arte (Yasmim era como o Bruce, adorava uma sujeira no lugar errado), seja pela bravura (Bela, a Sargentona, era capaz de entrar em briga com Pastor Alemão, só para nos defender), seja pelo jeito mãezona (Cléo chegou a adotar até cão), seja pela diversão (todas elas, sem exceção). Obrigada por compartilhar sua história e me fazer reviver esses momentos. Espero que seja assim que você tenha contato com os seus.