Malucos-beleza


O elenco de "A Terra pode ser chamada de chão"
Foto: Rafaella Martinez

O texto abaixo foi escrito, em 2014. Optei por republicar na íntegra, sem alterações. 

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O projeto Tam Tam completa 25 anos, com estreia de peça, reativação de programa de rádio e trabalhos com dança e literatura. Um quarto de século para um projeto que começou na extinta Casa de Saúde Anchieta, um manicômio conhecido como Casa dos Horrores. Este é o sexto e último texto da série sobre o projeto.


Marcus Vinicius Batista


O Teatro do Sesc, em Santos, estava lotado. Cerca de 800 pessoas, de políticos a jornalistas, de familiares a simpatizantes, assistiram à estreia da peça “A Terra pode ser chamada de chão.” Era o primeiro capítulo de uma série de eventos que comemoram 25 anos do projeto Tam Tam, trabalho que nasceu nos corredores da extinta Casa de Saúde Anchieta, o famoso manicômio do litoral de São Paulo, pelas mãos do arte-educador Renato di Renzo.

Durante uma hora, o palco foi preenchido por cerca de 60 atores e atrizes, entre pessoas ditas normais e deficientes das mais variadas origens. Depois de seis meses entre concepção da peça e ensaios, todos se misturavam para denunciar os problemas sociais e ambientais que nos envolvem no mundo contemporâneo.

Di Renzo nunca dirigiu tanta gente ao mesmo tempo, assim como o projeto Tam Tam jamais havia recebido tantos recursos para colocar um espetáculo em cartaz. Foram R$ 60 mil por meio da Secretaria do Estado da Cultura. A peça será reapresentada, em 16 de julho, no mesmo teatro.

O casamento de Renato com a arte começou na década de 60. Na família di Renzo, é famosa a história de que, quando tinha três anos, Renato se recusou a vestir uma roupa de festa junina porque a calça era formada de retalhos.

A relação com a saúde mental veio por meio de uma profecia. Ainda criança, ele morava na Vila Belmiro e brincava perto da Casa de Saúde Anchieta, quando ouviu de um dos colegas: “se você continuar desse jeito, vai acabar aí dentro.”

A profecia levaria cerca de 25 anos para se concretizar. Antes, Renato teve que sair da cidade. Em 1969, ele se mudou para São Paulo a fim de estudar artes. Primeiro, se matriculou no extinto Instituto de Artes e Decoração (IAD). Teve de aulas com Naum Alves de Souza e com o arquiteto Ruy Othake, entre outros craques da área cultural.

Depois, Renato se formou em Artes Plásticas, na Faap. Durante o curso, ele se aproximou da discussão em torno das políticas de saúde mental, período em que brotava uma visão antimanicomial e que predominavam os manicômios como depósitos de gente. Pessoas eram internadas por doenças mentais, mas também por alcoolismo, consumo de maconha e outros comportamentos considerados socialmente desviantes. Uma perspectiva que remete ao século XIX, quando D. Pedro II inaugura, em 1850, o primeiro hospício, no Rio de Janeiro.

Além de se envolver no debate sobre o assunto, Renato fez várias visitas ao Hospital Psiquiátrico do Juqueri, em Franco da Rocha, em 1971, com um amigo que trabalhava na Editora Abril. O local abrigava aproximadamente quatro mil internos. Quando desceu a Serra do Mar em definitivo, o então arte-educador percebeu que a Casa de Saúde Anchieta era o palco para intervenções sociais e artísticas.

Renato confessa que não tinha ideia do que poderia fazer quando entrou pela primeira vez no Anchieta, em 25 de agosto de 1989. O hospital era um caldeirão por conta da superlotação, mas também pela iminente intervenção da Prefeitura de Santos, que fecharia o lugar e descentralizaria o atendimento aos pacientes de saúde mental por meio dos Núcleos de Apoio Psicossocial (Naps). O Anchieta tinha capacidade para 180 internos, mas abrigava 700 pacientes.

Ao entrar no Anchieta, ele viu o mundo cinza. Paredes, corredores, profissionais de saúde no piloto automático de uma instituição que agonizava. Lonas separavam pacientes de visitantes. Aliás, lonas que seriam transformadas menos de dois meses depois em material para peças teatrais.

Sala onde aconteciam as oficinas

Renato se aproximou dos pacientes, que não reagiam. Até que um jovem negro, de quase 1,90 metros, perguntou a ele o que fazia ali. Renato respondeu: “ teatro”. “O que é isso?”, perguntou Ercílio, hoje funcionário do programa municipal de reciclagem de lixo, o Lixo Limpo.

Segundo Renato, “ele ficou me olhando com cara de quem não tinha entendido. Aí, vi uma TV e disse: vim fazer novela.” Todos compreenderam e daí nasceram os primeiros personagens.

Não foram necessários 15 minutos de conversa para que Ercílio escolhesse ser um papa. Outro paciente, tão branco quanto a roupa de um médico, queria ser um pirata. Surgia a primeira peça, na qual um papa se aliava a piratas para roubar o Vaticano e dividir o produto do assalto meio a meio.

Um mês depois, em setembro de 1989, o trabalho já se estendia a outros pacientes, e Renato passava vários dias da semana dentro do Anchieta. Numa reunião com eles, apareceu a ideia de se criar um nome. Tam Tam, doidões, malucos-beleza, pirados; a lista girava em torno de expressões associadas, é claro, à loucura.

O grupo fechou em torno do nome TamTam. Renato explicou que o nome representava um gongo chinês, que ecoa para todos os lados. Daí, bastava entrar um médico ou enfermeiro para que os pacientes perguntassem o significado da expressão TamTam. Diante da resposta óbvia, associada à loucura, os internos retrucavam com a definição dada pelo arte-educador.

Intervenção cênica - rádio TamTam

O teatro se expandiu para o rádio. O programa TamTam nasceu em 1990 dentro do Anchieta, a partir de um aparelho de som 3 em 1, fornecido pela Prefeitura. 32 caixas de som espalhavam o programa pelas dependências do hospital psiquiátrico. Todos trabalhavam sob pseudônimos. O slogan resumia a ideia: “um programa do tamanho da sua loucura.”

Depois, o programa foi para a rádio Cacique AM e cresceu com a criação do jornal TamTam. Quando passou para a rádio Universal, a duração se fixou em meia hora por semana. Dois telefones não davam conta de atender aos ouvintes. A última parada foi na extinta Rádio Clube, também em Santos. No total, foram oito anos no ar.

Uma das propostas do aniversário de 25 anos é a retomada do programa de rádio. Ainda faltam definir o formato e acertar com uma emissora. Veicular o programa via Internet é também uma possibilidade.

Em 1990, Renato e Claudia Alonso se conheceram em uma das salas da Casa de Saúde Anchieta. Claudia era recém-formada em Psicologia pela Universidade Católica de Santos. Dançarina de formação clássica, ela dirigia uma escola de dança, mas nunca se sentira totalmente encaixada entre barras e sapatilhas. O motivo era que Claudia não atendia aos rígidos padrões estéticos que cercam as bailarinas.

Com o Trabalho de Conclusão de Curso embaixo do braço, ela conseguiu uma audiência com o então secretário de Saúde David Capistrano. Ele folheou o projeto e foi taxativo: “vá procurar o Renato di Renzo.”

Claudia nunca havia visitado uma instituição psiquiátrica. “Achava que louco babava e mordia.” Ela se lembra até da hora em que entrou no Anchieta: “Dez e meia da manhã”. Apavorada, atravessou corredores e entrou numa sala com paredes coloridas e pacientes em diversas atividades artísticas. Ela teve a sensação de que Renato a julgara como uma nova paciente, pois foi incorporada ao trabalho sem apresentações. “Ele beijou a todos. Ele pensou que eu era uma louca nova.”

Cláudia não suportou o ambiente, foi ao banheiro e vomitou. Na volta, conversou com Renato. Naquela época, o arte-educador já era funcionário da Prefeitura e trabalhava diariamente na instituição. No final da conversa, ele fez a pergunta que mudou os rumos da vida profissional de Claudia. “O que é mais importante para você? A dança ou a psicologia?”

Cláudia Alonso (à esquerda), em uma das edições da rádio TamTam

Ao se envolver com os pacientes do Anchieta, Claudia não poderia imaginar que seu grupo de dança, o Orgone, se transformaria, em 1993, em um grupo de teatro. Ela fechou a academia de dança e prestou concurso para a Prefeitura, onde trabalha até hoje com deficientes na Secretaria de Assistência Social.

A mudança de trajeto do Orgone foi um salto artístico hoje simbolizado em mais de cem prêmios e 20 espetáculos. O nome não seria mais apropriado. Orgone é a união das palavras orgon (órgão) e one (energia, pulsão, vida). O grupo teve mais de 5 mil alunos desde a fundação.

O projeto TamTam saiu dos corredores da Casa de Saúde Anchieta e ganhou outros palcos a partir de 1993. É quando Renato di Renzo dirige o primeiro espetáculo para o grupo: “Na sala de espera do Dr. Sigmund”. O espetáculo, que unia teatro e dança, faturou prêmios e bagunçou as definições em torno do trabalho deles. Para uns, teatro-dança. Para outros, dança-teatro. Estas categorias não existiam nos festivais, na época. Uma terceira via os classificava como teatro físico.

No mesmo ano, os trabalhos dos pacientes – inclusive o programa de rádio – foram expostos no Sesc, em Santos. Era o começo de um caminho que os levou a programas como Jô Soares Onze e Meia (o nome na época) e a reportagens de jornais e revistas do país e do exterior, como o The New York Times. Um ano antes, em 1992, o projeto se transformara na ONG Associação Projeto TamTam e se estendia a outros projetos de inclusão social. 

Bastidores da gravação com Renato di Renzo, no programa
Jô Soares Onze e Meia 

Em 1996, o TamTam se desmembra em dois outros filhos. A Rádio Moleke era um programa semanal que envolvia crianças e adolescentes de abrigos municipais. E o Zazah´Bar, que ocupava o terceiro andar do Teatro Municipal de Santos. “Todo teatro precisa de um bar”, explica Renato.

A partir de 1997, com o término da gestão David Capistrano, vieram as vacas magras. O TamTam perdeu espaço na administração Beto Mansur. Foram dois anos de vida itinerante. Os ensaios e demais projetos sociais aconteciam em casas antigas emprestadas por simpatizantes e amigos.

O trabalho também aconteceu em galpões e, em 1999, o Orgone passou a ensaiar no Colégio Universitas, na Ponta da Praia. Foi nesta fase que di Renzo solidificou o que atores chamam de “Pedagogia diRenziana”.

O grupo permaneceu no Universitas até 2003, quando o foyer (terceiro andar) do Teatro Municipal foi devolvido ao projeto. Nascia o Café Teatro Rolidei, hoje sede de todos os trabalhos que envolvem o TamTam.

Parte dos cenários vem de doações

Logo na entrada, o Café Teatro Rolidei parece um picadeiro. À esquerda, uma arquibancada com três degraus, usada para debates, espetáculos e aulas. À direita, um espaço que serve de palco e de cenário para a exibição de filmes. O Café abriga, todos os anos, o Ciclo de Cinema de Saúde Mental.

As paredes são uma bagunça organizada. A decoração é fruto de cenários abandonados no fosso do Teatro Municipal, além de doações e objetos encontrados pelos integrantes do grupo nas ruas de Santos.

O segundo ambiente, após uma cortina vermelha, tem o balcão do bar, uma biblioteca com dois mil títulos, outra minibiblioteca sobre rodas para crianças, com 200 exemplares, e uma infinidade de quinquilharias, como chapéus antigos e brinquedos, que transforma o espaço em um cenário múltiplo, a ser reconstruído pela imaginação do visitante.

Nos fundos, fica o banheiro, com três cabines, uma cadeira de barbeiro, azulejos em preto e branco e uma exposição de fotos pelas paredes com a história do projeto TamTam. O banheiro é chamado de bissexual. “Mas as cabines são individuais”, ressalta Claudia. Na janela, uma foto que simula a vista da cidade de São Paulo.

Duas vezes por mês, em média, acontece uma balada no Café Teatro Rolidei. A balada, por segurança, tem hora para acabar: duas horas da manhã. Nos variados espaços, famílias – inclusive com crianças – dançam, pois há sempre uma banda convidada, assistem a performances teatrais, leem e comem petiscos. Houve até celebração de noivado no local.

Ao final de cada balada, todos são convidados a limpar a casa. “É uma forma de cultivar pertencimento, cidadania. O bar é um lugar terapêutico”, afirma Claudia Alonso. Os frequentadores podem deixar mensagens em um dos cadernos do Café. Ao total, são 100 volumes. Uma das mensagens que indicam o espírito das baladas, deixada por um visitante. “Adeus Prozac. Olá, Rolidei.”

Cenário - Café Rolidei
Thays Ayres, de 33 anos, representa os braços direito e esquerdo de Renato e Claudia e conhece o Café Teatro Rolidei desde o trabalho de parto. Ela produz espetáculos, cuida da parte administrativa, do relacionamento com a imprensa, trabalha como assistente de direção e preparadora de elenco e, duas vezes por semana, dá aulas de teatro. Nas baladas do Café Rolidei, fica no caixa e interpreta uma detetive.

Ao simbolizar a versatilidade dos integrantes do grupo, Thays acredita que o teatro praticado pelo Orgone é alimento para o dia a dia. “O teatro serve para desmontar, sair do eixo.” Ela conheceu o projeto quando tinha 17 anos e fazia teatro no Centro Cultural Brasil-Estados Unidos. As aulas eram dadas por Renato di Renzo. Ela o seguiu para o Colégio Universitas e injetou a arte em definitivo na vida ao entrar para o Grupo Orgone.

Thays se formou em Psicologia e chegou a passar em concurso no Hospital Guilherme Álvaro, em Santos, mas preferiu a arte. Ela entende que o teatro a permitiu não apenas aplicar o que aprende no mundo acadêmico, mas também a sobreviver como alguém que decidiu caminhar fora dos padrões.

Depois de 16 anos, a família, embora acompanhe os espetáculos, ainda torce o nariz para a troca do consultório pelo palco. “Não sou rica, não tenho carro e minha casa, mas tenho outros ganhos. É um investimento maior, um pouco do que deveria ter em cada escola. Eu fui escolhida pelo teatro.”

Fotos: Beth Soares
Felipe Domingues, por sua vez, está há cinco anos no grupo. Entrou com 16 anos e hoje é o garçom, um dos personagens que compõem as performances nas baladas do Café Rolidei. Disléxico, ele atua como voluntário cinco noites na semana. “Eu sou ótima pessoa e péssimo aluno. Ninguém me entendia.” Além disso, ele foi diagnosticado com hiperatividade. A terapia são as múltiplas atividades que exerce na rotina do Café Rolidei. De jardinagem à limpeza do espaço.

Felipe é formado em Gastronomia e com pós-graduação em Gestão de Negócios da Alimentação. (Felipe mora, atualmente, na Irlanda) No Rolidei, Felipe intepreta Adolf, um garçom alemão que chegou no Brasil em um porão de navio e que aprendeu português com um argentino. “Hoje, consigo ficar concentrado. A questão não é inserir pessoas diferentes na sociedade, mas que todos possam conviver juntos”. 

O projeto TamTam, depois de 25 anos, conta com 185 alunos e dezenas de voluntários. As baladas recebem mil pessoas por mês. A casa está sempre lotada, com filas na porta. Na prática, todos ali rezam a mesma cartilha, do teatro e da arte como libertação. Como ensina di Renzo, parafraseando Grotowski, “o trabalho destrói o cansaço, destrói o corpo cheio de máscaras, corpo pré-estabelecido.”

Assim é desde 25 de agosto de 1989, quando ele atravessou pela primeira vez o portão da Casa de Saúde Anchieta, a “Casa dos Horrores”.

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