A prece de Renata Carvalho



Marcus Vinicius Batista

Renata Carvalho vive em um mundo onde não se encaixa. Um mundo em que ela faz parte por insistência, por resistência, pela força dos atos que carregam as palavras da atriz. Dos atos da mulher que, em outra profissão, insistiu em entrar nos cortiços, no terreno do invisível, para levar proteção contra as doenças sexualmente transmissíveis. Foi assim que a conheci.

O teatro é o elo de ligação entre as duas Renatas, que moram dentro dela, com a liberdade poética do nome da peça que a expôs ao mesmo mundo que, em parte, teima em persegui-la. Renata enfrenta o velho inimigo de sempre: o preconceito. Mas, desta vez, aliado à intolerância religiosa de quem justifica a violência com o silêncio de Deus e em nome Dele.

Não tenho procuração de amizade para falar de Renata Carvalho. Isso me dá a tranquilidade para refletir sobre os papéis sociais dela. Renata carrega, como muitos em Santos, a arte como ação política e social, e não como um adereço de final de semana antes da pizza com cerveja gourmet.

A atriz já enfrentou um adversário previsível e igualmente persistente. Renata protagoniza a peça "O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu", que estreou no Festival Internacional de Londrina (FILO), no Paraná.

O espetáculo, adaptado do texto da irlandesa Jo Clifford, coloca uma mulher transexual no papel principal. Renata é uma mulher transexual. A peça, que deveria ser apresentada na Capela da Universidade Estadual de Londrina, acabou censurada e aconteceu em um anfiteatro, com o dobro de público.

O texto, ao contrário do que praguejam os medievais, fala de tolerância, amor e respeito pelo outro. Nada mais cristão. Nada mais simbólico como Jesus Cristo nas velas que brilhavam nas mãos de parte do público que assistiu à peça.

Entre o sagrado e o profano que vivem num palco, sobrevivem as palavras da peça: "Ele é ela. Ela é ele. Todas são Jesus." Em um país onde se mata por preconceito, as frases são uma prece. Na voz de uma atriz. Só isso: uma atriz, sem rótulos.


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