O velho estivador e a festa


Marcus Vinicius Batista

A roupa era de missa. O terno surrado ganhou um banho de escova para sair do armário depois de anos. O modelo era antigo, uma carcaça do século passado, mas que ainda impressiona numa festa. O estivador havia perdido as esperanças com tantos hematomas, fruto das surras de um século que poderia ter se encerrado, além da contagem do tempo.

Ele não recebera o convite. Sequer confirmara a data da festa, mas se julgava um homem prevenido. E tinha o direito e o dever de estar lá. Passara várias vezes em frente à casa onde nasceu. Não acreditou nos tapumes, que escondiam o essencial. Escondiam a saudade de reviver a glória, mesmo sabendo que hoje só enxerga em preto e branco amarelado.

Quando os tapumes foram aposentados, ele aposentou a desconfiança. Os parentes alertaram: "é armadilha!". O neto acendeu a luz amarela à maneira dele: "É pegadinha do Malandro, vô!".

O histórico colaborava para a dúvida. A casa foi fechada no final do século passado. Sejamos francos, pensou!, as reaberturas sempre foram parciais, sempre aquela sem vergonhice de falta de tudo. Um tira e põe de roupa de gala, que ficou com receio de rasgá-la numa dessas irritações por um novo adiamento da festa.

Ele não passava perto para não se aborrecer mais, sobreviveu a uma época em que os velhos parceiros perderam seus empregos no cais, tentaram novos atracadouros profissionais, novos negócios, mas se esqueceram de que nunca tinham se preparado para abandonar a maresia e os sacos de açúcar e de café. Carregar os sacos é muito diferente de vender os dois produtos combinados atrás de um balcão.

Antes de outubro, ele viu o garoto em campanha na TV. Prometia abrir a casa até o final do ano. Ele tinha algum crédito, pois prometera quatro anos antes abrir a casa novamente e começara uma reforma.

Enquanto passava a camisa de botão, a única que restara de uma vida mais ativa, o velho estivador tentava não dar voz ao espírito da desconfiança. Se um lado explicava que a obra atrasara demais, o outro explanava que todas as obras eram assim, faziam parte da cultura brasileira do jeitinho, do atraso.

A gravata colorida não parecia tão desbotada quanto no último casamento. Dava para o gasto, bastava que o ferro de passar fizesse seu trabalho. Ao estender a gravata na cama, o cadáver das frustrações insistia em sair do túmulo. A casa vai ficar pronta, mas e os móveis? E as pessoas? Quem pagará a conta depois que a casa reabrir?

O otimismo tomou a dianteira, como o estivador sempre agia quando os dominós na mesa de canto do bar desejavam flertar com a mão alheia. Falou em voz alta: "Assim que a porta for destrancada, eles se organizam e tudo flui com naturalidade". Nada como as leituras zen para melhorar o vocabulário e dar novos ares para a vida, pensou, surpreso com a erudição momentânea.

A promessa foi reforçada depois da festa da vitória, no começo de outubro. O garoto prometera quebrar o cadeado e abrir as janelas. O velho estivador comprara a ideia, crente que visitaria o lugar onde nasceu, onde dois dos três filhos também vieram a esta cidade.

O homem do cais lustrou os sapatos, tirou o par de meias sociais do fundo da gaveta. Vestiu primeiro a calça, colocou a camisa, ajeitou o cinto, abotoou o terno. Meias e sapatos completaram a roupa de missa. Estava nos trinques.

Quando pensava em sair de casa, o estivador testemunhou no noticiário. Não era agora! Quem sabe o Hospital dos Estivadores funcione no Natal? Otimista, ele tirou o paletó e pensou: "Estou pronto, pelo menos, para a Missa do Galo!"

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