A varanda (in)discreta



Marcus Vinicius Batista

Esta crônica nasceu na varanda. E é sobre ela.

Tive, durante anos, um prazer particular, solitário, em ocasiões raras dividido com Beth, minha mulher. Em intervalos de dias de trabalho, trocava a farda de professor ou jornalista, vestia uma bermuda, chinelo, catava minha cadeira de praia, um livro e só parava na faixa de areia. No bolso, uns dez reais, para um suco e refrigerante nas duas horas de oásis mental, numa das praias de Santos.

De dois meses pra cá, três dos sete itens do kit de sobrevivência permaneceram intactos. Ficaram a bermuda, a cadeira de praia e o livro. O dinheiro e o chinelo saíram de cena. A bebida passou a ser o chá mate gelado, nunca igual ao da praia - desconfio que substâncias proibidas façam a diferença por lá -, mas quebra um galho.

A mudança maior foi geográfica. A praia deu lugar à varanda, um universo sem areia e mar, porém acolhedor e de uma limpeza mental indescritível. O novo endereço trouxe consigo um novo relógio. Troquei o dia pela noite.

A varanda é minha companheira de madrugadas de insônia. Nunca tive uma na vida e esta em nada lembra as gourmets, das churrascarias que abrigam vasos de plantas ou que viram depósito de brinquedos semiabandonados.

Minha varanda é pequena, comporta - no máximo - duas pessoas, ainda assim batendo joelhos. Numa dessas noites, Beth me acompanhou para estudar fotografia. Ela desistiu pelo frio e pela minha insistência em recitar um trecho do livro do momento, umas linhas que preciso dividir com quem está próximo. A empolgação mata a concentração alheia.

Na parede, pendurei uma máscara africana, prima distante da carranca brasileira, mas também capaz de afugentar o mau olhado e os espíritos zombeteiros. Abaixo dela, um pallet furtado de depósito de supermercado, que um dia abrigou vasos, hoje é um projeto de suporte para temperos.

A varanda é o cenário para ler e pensar, quase em silêncio absoluto. Penso e leio. Devorei o novo livro do Tostão, o melhor texto sobre futebol no Brasil. A satisfação de digerir por horas as lições que saltaram de uma obra que esperei por um mês, com visitas periódicas às livrarias.

Sentado na cadeira de praia, comprada há 30 quilos atrás, comecei a ler as crônicas selecionadas de Rubem Braga, o maior dos mestres, um pedido do irmão-poeta André Argolo. Nesta madrugada, cruzei com o livro "Desencontros", de Giovanna Olivetti, uma autora de 16 anos que escreve como poucos. Assunto para outra crônica.

Quando descanso da leitura, a varanda me dá a discrição de observar minha rua durante a madrugada. Via de passagem, a Frei Francisco Sampaio sufoca da adrenalina urbanóide ao longo do dia. Na madrugada, ela me transporta para Luz, cidade do interior de Minas Gerais, onde nasceram minha mãe e minha avó.

A diferença era o fuso horário. Em Luz, a paradeza acontecia a partir das dez da noite. Na Frei Francisco, o ponteiro se arrasta após às duas horas. O parapeito da varanda mais as telhas e o muro do prédio me escondem dos pedestres. Tudo, claro, fica mais fácil com a pressa de chegar em casa de madrugada, fora o fato de que poucos olham para os lados ou para cima hoje em dia, mesmo que seja no primeiro andar.

A varanda me dá as copas das árvores que compõem o corredor verde da rua, árvores que driblam a fiação e insistem em se exibir como sombras dos holofotes amarelados. A varanda também me alimenta com nossas leituras dos prédios vizinhos, das casas geminadas, da lembrança diária de uma delas, todas de tijolinhos, meu tipo preferido de moradia de quem não tem coragem de deixar a pseudo-segurança do apartamento.

Os gatos aqui de casa fazem companhia paras leituras. Gatos - vocês sabem - fingem nos ignorar para não parecerem cachorros enrustidos. Os dois se revezam na varanda, paralisam no parapeito. Ela move a cabeça de um lado ou de outro, atenta ao som dos motores, perceptível aos meus movimentos. Ele, foco num ponto, olhar direto nela. O revezamento se renova no ritual de se esfregar nas minhas pernas, sinal para ler e coçá-los ao mesmo tempo.

A varanda me acaricia com o silêncio seletivo. Leio ao ruído distante do sistema de água, interrompido por carros que passam com intervalos de minutos. De vez em quando, ciclistas me lembram que preciso tomar vergonha e consertar a bicicleta.

A praia passou a ser o reino de uma fotografia que se recusa a deteriorar. Por enquanto, ela perde para varanda, o paraíso no cômodo ao lado, onde quem mandam são a preguiça física e a ginástica literária.

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