A torcedora, o tricô e as bananas



Marcus Vinicius Batista


Passei oito anos tentando ser jogador de futebol. Uma contusão e uma cirurgia me fizeram perceber que a insistência pode apagar a capacidade de autoavaliação.

Desses oito anos, vivi seis deles em quadras de futebol de salão. Era o caminho natural para quem sonhava com o futebol de campo. Quando o ritual de passagem acontecia, era normal que o moleque - fominha de bola - jogasse as duas modalidades. Como diria minha avó, atirava-se em dois coelhos. Vai que acertava um deles.

A avó Hermelinda me acompanhou por seis anos em ginásios espalhados pela Baixada Santista, São Paulo e uma vez no Rio de Janeiro. Hermelinda tinha nome difícil, como minha avó, Norvina, que morava em Minas e não pôde acompanhar este goleiro que escreve crônicas.

Hermelinda era avó, na verdade, do Paulo Coelho, não o escritor, mas o administrador de empresas que foi o melhor com que joguei - contra e a favor - na minha cidade. Um amigo de 30 anos.

Comecei a jogar contra o Paulo - e contra a torcida da Hermelinda - aos 10 anos. Ela virou a casaca - os dois mudaram de time, o neto e o amigo - aos 13. Ela estava sempre lá, na arquibancada. Sentava-se entre os torcedores, sem olhar qual a camisa, sem verificar se era o time da casa ou o adversário. Colocava a bolsa ao lado e esperava.

Dona Hermelinda não pulava. Não esbravejava. Não xingava. Não criava confusão com juiz. Ela apenas observava e, de vez em quando, falava baixo com quem a acompanhava, a filha ou o genro. Se a memória não pregou peça, ela sacava duas agulhas de tricô e mantinha o próprio ritmo de driblar o tecido, independentemente do ritmo do jogo ali embaixo.

Dona Hermelinda era incansável. Pequena, pouco mais de um metro e meio, e magra, ela dava a impressão de estar a ponto de quebrar. As mãos, calejadas e fortes do trabalho duro, desmentiam a impressão de quem quase desaparecia na arquibancada lotada, mas que preenchia a casa principal da chácara de Ribeirão Pires, durante as festas, os churrascos, as peladas de final de semana e férias escolares.

Ela era teimosa. Não parava até que o último convidado fechasse o portão da chácara. Não deixava o ginásio até que a molecada saísse dos vestiários. Na derrota, no empate ou na vitória, vinha uma palavra breve de consolo, um elogio que diminuía a dor de uma partida mal jogada, de uma falha individual, daquelas que sacodem o placar.

No final de nossa carreira no futsal, lá pelo começo da década de 90, Dona Hermelinda andava com lentidão, mas sempre chegava no destino traçado. As costas arqueavam, mas jamais abaixava a cabeça para marmanjo com o dobro do tamanho. A próxima tarefa. A próxima coisa a fazer. Nunca se sentava, exceto na arquibancada de um ginásio qualquer.

Lembrei-me dela na semana passada. Beth, minha esposa, me avisou que as bananas estavam na geladeira e poderiam passar do ponto. Apanhei duas delas, descasquei e piquei em um prato. Joguei por cima o resto de achocolatado, amassei e misturei.

Percebi que o método vinha lá dos anos 80, da Dona Hermelinda. Ela repetia o ritual todas as manhãs, para o neto. Quando o visitava, recebia o mesmo presente. Uma refeição pré-treino que se transformou em café da manhã pré-trabalho.

Dona Hermelinda parou muito tempo depois que eu e Paulo Coelho paramos de jogar. Viramos quarentões peladeiros, enquanto ela nos assiste em outro endereço. Sentou-se em alguma arquibancada, olhou para a quadra, hoje de grama sintética, desejou um jogo limpo, apanhou as agulhas e começou sua própria partida.

Obs.: Texto publicado no blog da Editora Global, em 19 de outubro de 2016.

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