Viajar e voltar (Crônicas além do quintal # 7)

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Marcus Vinicius Batista

Passei anos sem viajar. Não é a viagem curta, de uma, duas horas e retorno, às vezes, no mesmo dia. É a viagem planejada, esperada, com vários dias de duração, para lugares onde você sabe pouco ou nada. De algum modo, você se acostuma, se adapta ao comportamento de temer o novo, de reduzir a importância dele com delicadeza.

Os últimos seis meses foram de mudanças substanciais na vida. De novas perspectivas, de promessas de reveillon que foram cumpridas, de nova dinâmica em diversos relacionamentos, de inícios às segundas-feiras que andaram de fato. De duas viagens (uma terceira no horizonte) que ressuscitaram o vírus capaz de nos empurrar para aeroportos, trens, hotéis, comidas estranhas, gente que veremos uma única vez.

No século passado, não desperdiçava a oportunidade de viajar. Estava na estrada em questão de horas, fazia e desfazia malas e mochilas em minutos. Dizia até breve, derramava lágrimas, beijava, abraçava e andava sem olhar para trás, sem se arrepender de que contaria moedas quando chegasse em casa. A motivação para o trabalho também incluía a ausência dele.

Os medos pelo que pode acontecer, mas quase nunca acontece, adormeceram a vontade de viajar. Os gastos e preocupações com coisas e pessoas que se mostraram supérfluas tomaram a dianteira na lista de prioridades. E nós nos acostumamos. E refazemos contas. E reivindicamos desejos que, muitas vezes, nunca nos pertenceram ou serviram para agradar terceiros, quartos, quintos e te permitiram transitar sem os conflitos inerentes ao desafio contra as convenções sociais.

Beth Soares, minha esposa, resolveu que havia necessidade de um tratamento. Eu convivia com a doença da inércia como se fosse um vizinho de portas de anos. Era mesmo, mas que não me causava perturbação ou incômodo. Eu me sentia escravizado por um modelo de pequenos problemas que subdimensionam os que importam e se fazem fortes pelo conjunto da obra.

A chance de viajar saltitava na nossa frente, rebolava pedindo atenção, gritava por um minuto de argumentos favoráveis. Beth me mostrou como planejamento e pesquisa auxiliam em redução de custos. Eu entrei com a dispensa de problemas, a redução dos meus custos, a diminuição da casa que exige manutenção cotidiana e a distância segura de quem nos atrasa com as mesquinharias dos problemas que não existem. Ou são fantasias elevadas em potência matemática.

Viajar foi o choque de civilização, que nos indica o quanto nos submetemos ao cenário selvagem criado por nós mesmos. Sair de casa nos coloca, por obrigatoriedade, um retrovisor em nossas fuças, com a luz adequada para que vejamos o quanto somos dependentes de elementos inúteis, dentro do trabalho, do consumo, dos anseios alheios, da pequenez das dificuldades que não merecem ser chamadas assim.

O pacote todo resulta na paralisia infeliz, em que desejos se sobrepõem como os cachorros que, no máximo, alcançam o próprio rabo com a ponta da língua.

Viajar escancarou uma porta que eu julgava extinta. É a conversa com gente interessante, de história única, impossibilitada de te julgar pelo passado, presente ou projeção doentia e preconceituosa de futuro. É o deslumbramento com as ruas comuns de outra cultura, com outro clima, com detalhes que só aparecem quando nossas pernas insistem em caminhar mais um pouco.

Estar em outro lugar é a vontade de experimentar, de absorver o sabor de uma comida de nome impronunciável ou a versão estrangeira do que você julgava conhecer como algo único em sua terra. É vivenciar a beleza que penetra sem pressa pelos olhos, pelo cheiro, pelo toque imaginável de quando você está a 300 metros de altura ou pisa em uma calçada qualquer.

Viajar é retomar o prazer de acordar cedo para ver um lugar onde só se sabe o nome e que talvez nunca mais o veja. É contemplar as lágrimas de quem você ama porque o lugar escolhido reacende o quanto ela está viva depois de driblar o lobo da morte pela enésima vez.

Fiquei viciado em viajar. Ir ao longe me sacudiu por dentro a ponto de matar todos os sonhos que fingiam sê-los, que agiam como sintomas de delírios comprados de outros escravos. A lonjura me trouxe para mais perto. Sonhos possíveis, reais, costurados e bordados com a alta probabilidade de experiências felizes.

As viagens me motivam a trabalhar para fazer outras viagens. Viver com menos para ter, como metáfora, uma mala menor que não provoque dores nas costas, de preferência. É um processo longo, que envolve desmamar por meses do antigo vício do conformismo. Tempo que exige policiamento, diálogo e apoio de quem está ao lado e à frente. Viajar não é, para mim, ato solitário. É divisão de vida, minha e dos outros.

Plantamos aqui, em casa, a semente do pomar. São os frutos que darão suporte para conhecermos outras paragens. E convencermos outros agricultores de que semear é o caminho. O pomar, bem irrigado, ficará sólido no papel de nos esperar, até porque viajar significa, para nós, o prazer do transitório, do temporário, inscritos na bússola que sempre nos trará de volta para casa.

Obs.: Texto publicado no site Jornalirismo, em 26 de julho de 2016.


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