Os dois Beneditos

O Benedito caçula - aquele que nos recebe
Fotos: Beth Soares
Marcus Vinicius Batista

O casarão branco os protege há 13 anos. Os dois irmãos nunca se veem e deixaram de se falar depois que um jardim e uma alameda os separaram. A marca de nascença, assinada logo abaixo do pescoço, indica que são filhos do mesmo pai, já falecido. Daniel Gonzalez os pariu no mesmo ano, em 2003, mas não na mesma gestação, o que derruba a tese de serem gêmeos.

O pintor Benedito Calixto não os conheceu, pela obviedade da própria existência-homenagem deles. Sem ancestrais, ambos convivem com a solidão parte dos dias. Na outra parte, mal têm tempo de construir laços, o tempo de uma caminhada com outros pontos de chegada, nunca de parada. Aquela história de cumprimentar em movimento para evitar maior contato.

A distância entre os Beneditos esconde a pequena diferença de idade, os semblantes de fases distintas da vida, o olhar sobre ângulos diferentes do lugar que os acolheu. Os dois Beneditos foram destinados ao desencontro. Especula-se que se encontraram uma só vez, há 13 anos, no ateliê de seu pai. Não houve palavras.

Se deixaram de se falar, pode ser pelo não dito. Ou uma mentira conveniente para evitar culpados. Se houve sentimentos, eles guardaram para si, no silêncio da própria imagem estática.

Desde então, a imobilidade os precede, a paralisia os mantém como adereços próximos das plantas, a inércia os perpetua como margens que tangenciam um jardim povoado de esculturas naturais ou feitas pelo homem. São cicerones de obras que diversificam a cultura litorânea por seus símbolos, os canais, a algumas dezenas de passos da orla, moradia primeira delas.

O casarão branco é um retrato três por quatro de uma cidade que morreu de inanição sustentável. O casarão, com seus muros baixos, expõe a agonia de uma Santos histórica, enquanto pede paz para sobreviver diante do concreto e o ferro que entortam prédios e ressacam artificialmente à beira-mar.

Os irmãos Beneditos riscam o canto de página imponente da Pinacoteca Benedito Calixto. São um sorriso de canto de boca. Para entendê-los, é essencial chegar mais perto. Por vezes, o olho humano desperdiça as sutilezas do lastro de família. Vejo gente recorrendo à tecnologia para captá-los. As lentes fotográficas – ou velha lupa – poderiam acentuar o que o tempo sangrou, mas as ranhuras não deixam seus efeitos desaparecerem.

O mais novo dos Beneditos aponta o nariz para a entrada lateral da casa, como um anfitrião informal mais exposto à maresia e às mudanças de humor dos visitantes. Ele nos diz boas vindas se entrarmos pela avenida da praia; de fato, se apodera do viés mais glamouroso da narrativa de álbum de família. Apesar de coadjuvante, pertence a ele o fundo do cenário das fotos mais clichês, porém mais populares. 

Cabe ao mais novo vigiar a entrada da Pinacoteca
O caçula, talvez pela rebeldia juvenil, nos recebe com cabelos esvoaçantes e a pele um pouco descascada, arriscaria dizer por 13 anos de exposição ao sol e à chuva. De exposição também às pessoas de visita esporádica e raiva gratuita, inimigos do pintor que está longe dali faz tempo.

O Benedito mais jovem poderia parecer mais descuidado, hipótese descartada pelo desenho do rosto preocupado. Não sisudo, cauteloso. Engana-se, porém, quem estende a imagem de desleixo aos óculos, quebrados na haste e aro direitos.

O estrago não foi obra do próprio caçula Benedito, desprovido de braços para a autoflagelação. Os óculos fora do lugar assim o ficaram por obra de sujeitos fora do lugar na sociedade. O Benedito mais novo engrossa a lista de gente importante acariciada por vândalos que atacam os impedidos de reagir.

Benedito Calixto e João Otávio poderiam dar as mãos num grupo de notáveis. Poderiam, pois do João, em frente ao colégio Escolástica, levaram justamente elas, as mãos. Quem sabe um intercâmbio de experiências com Carlos Drummond de Andrade, no Rio de Janeiro, outra personalidade atacada pela intolerância camuflada no anonimato?

O outro Benedito é um sujeito reservado. Sua vida é proteger ou contemplar o Salão Verde, aos fundos do jardim da Pinacoteca, depois da Alameda Edith Pires Gonçalves Dias. O Benedito primogênito acompanha também uma casa recém-reformada e abrigava, até o ano passado, uma biblioteca e uma sala de reuniões.

O mais velho cumpre seu papel dentro das relações fraternas. Sustenta uma postura séria, talvez de quem foi preterido pela dinâmica da Pinacoteca, talvez pela responsabilidade de cobrir a retaguarda, mesmo que restrita a quem apenas deixou o carro no estacionamento. 

O Benedito mais velho - a experiência que protege
o Salão Verde da Pinacoteca

Este Benedito anda – ou melhor, permanece – com a gravata no lugar certo, o cabelo é sempre alinhado, os traços só têm rugas se considerarmos os movimentos das espátulas de seu pai-escultor. Os selvagens nunca prestaram atenção nele e, por isso, não consideraram sua paradeza como estímulo a carícias violentas e desautorizadas.

Os Beneditos não nasceram para o estrelato comparável ao do pintor-referência. Ambos foram designados para a rotina coadjuvante de uma passagem, da ligação entre a entrada ou o fundo e o casarão branco. Arriscaria dizer que o silêncio traz a visão de quem pouco é visto, mas consciente de que são as palmeiras simbólicas de um oásis dentro do deserto de metal que nos cerca, que nos esfrega o dedo de uma cidade rumo à falsa modernidade.

Obs.: Texto publicado, originalmente, no site Juicy Santos, em 7 de junho de 2016. 

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