O ninho vazio (Conversas com Beth # 28)



Marcus Vinicius Batista

De todas as ausências que a lúpus pode provocar, confesso que dormir numa cama maior, sem que as medidas sejam alteradas, é a pior delas. O fato de eu e você nos vermos todos os dias não ameniza uma equação tão particular quanto dolorosa: não consigo me acostumar a dormir sozinho.

Dormir sozinho ressuscita no primeiro, segundo, terceiro dias o momento em que o silêncio se faz vivo, grita para me lembrar que pensar não permite recusas. Ler vira batalha entre o texto que pula do papel contra o texto que resiste no fluxo de consciência. O segundo vence e, assim, vegeto pelo raciocínio do que é insolúvel por hora, que dói sem a alternativa de arrumar uma ocupação.

A casa - ainda bem - está preenchida pelas crianças que, acompanhadas da nossa sobrinha Rafaela nesta noite, ocupam com risadas todos os cômodos. A diversão delas entra na madrugada e adia o que me incomoda há um ano.

Vivo apoiado na fórmula de resolver sucessivas questões ou problemas. Sempre há algo a fazer, algo a planejar, solucionar. Mantenho-me em movimento, mas pouco concentrado. Meu espírito está no hospital 24 horas, em coincidência eventual com o corpo que aparece por lá todos os dias.

Tento compreender a dificuldade de sentir saudades de você ainda que tenha acabado de te ver. Convivo com a sensação de que te visitar é um intervalo de indulto na rotina do quarto de hospital. Sem liberdade, com interrupções. O momento atual é, obviamente, incomparável com a UTI de junho de 2015, mas tem o peso da memória, o medo da repetição, o pavor da falta.

Nas duas primeiras noites, dormi do seu lado da cama. Seus travesseiros completavam o ambiente de simulação sensorial. O aroma e o desenho do colchão amenizaram a decisão médica de nos afastar por horas. Como desculpa para quebra de fronteira sem diplomacia, eu precisava carregar o celular para despertar de manhã cedo, e a tomada fica na parede do seu lado, ao alcance do braço que vai implorar por mais 15 minutos.

O cansaço, somatória da preocupação inerente à vida hospitalar com o ritmo de correções de provas (a ditadura dos envelopes pardos) mais a chegada das crianças, colabora para o desmaio por cinco, seis horas. Um sono duro, solitário, de sonhos esquecíveis.

O sócio-proprietário do leito, de origem felina, também percebeu que o cenário não era familiar. Ele permanece, em sua própria perspectiva, nos emprestando o espaço, mas só vê um corpo por perto, uma protuberância a se encostar. Ele se aconchega, às vezes repete os movimentos como se você estivesse aqui e se esforça para ser metódico. Algo falta. Ele se abstém de me explicar. Faz o quer, sem satisfações ao substituto.

Na terceira noite, meu melhor amigo resolveu o problema, em parte. Vini pediu para dormir comigo e ocupou seu espaço na cama. Ele fechou os olhos, desejou boa noite e pegou na minha mão antes de apagar. O ronquinho respondia por si.

A tranquilidade, claro, paliativa, foi de outra natureza, num gesto de amor que me fez lembrar de você. O roubo de cobertor também recuperou lembranças recentes. Só que, com ele, não é preciso uso de força tática para recuperar parte do patrimônio. Tudo se justifica numa mente esperançosa.

Começo a ficar preocupado. O ninho se esvazia em intervalos de seis meses. É a terceira vez em um ano e meio, o que poderia caracterizar um fenômeno sazonal. Nada científico ou sociológico, só uma divagação de quem se sente em alerta constante, em expectativa ininterrupta do retorno para o velho endereço.

Estou certo de que o fenômeno não se repetirá neste apartamento. Torço para que não se repita em outros lugares. O lobo não merece menção, tamanha a redundância melancólica que povoa a saudade.

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