O camarada (Conversas com Beth # 24)


Marcus Vinicius Batista

A cada viagem de ônibus, eu via um homem preocupado, pouco disposto a conversar. Talvez fosse eu. Acredito que nós dois. Ele era meu companheiro quase que diário de viagem até o Hospital Beneficência Portuguesa, onde Beth estava na UTI. Faz quase um ano, 19 dias de internação que recriaram o dia a dia, com faíscas até hoje.

Via, sentado ao meu lado no ônibus da linha 54, um sujeito que tentava se controlar, que se sentia impotente diante daquilo que ninguém poderia expulsar, exceto os médicos que cuidavam dela. Os rins - a vítima da vez - necessitavam de acompanhamento contínuo, situação que ocorre até hoje, com remédios.

Naquele trajeto diário de meia hora, ele seguia quase o tempo todo em silêncio. Eu, como sempre levo um livro, optava por ler para não aborrecê-lo. Alguma leitura leve com risco de esquecimento por causa das dificuldades de me concentrar. Pílula para pensar menos e sofrer.

Ao ler, eu temia que Seu Lauro me interpretasse como mal educado. Jamais poderia ser grosseiro com quem me trata como filho. Parava, eventualmente, de ler e puxava conversa. Nada pesado, algo sobre futebol, as crianças, a obra ao lado do prédio dele.

Às vezes, repetia perguntas de dias anteriores e, com tranquilidade, ouvia as mesmas respostas. Passagem de tempo, nada mais. Nós nos empurrávamos para amenizar a impotência, a incerteza, a melancolia e - reconheçamos - o pavor de ver Beth doente numa UTI.

Seu Lauro, pai dela, é macaco velho nas crises da lúpus. Quinta vez. Crises de vários tipos, com vários tratamentos, com dores em regiões diferentes do corpo da filha caçula. Semanas com Beth de cama em casa. Mas nada como essa, que trazia a UTI como novidade. UTI é risco de morte, não é passeio por seriados médicos, mesmo com Beth lúcida, consciente de tudo que se passava, melhor informada do que nós, os acompanhantes.

Não me lembro quantos dias estivemos juntos nessas viagens de ônibus, no cadastro da portaria do hospital, nos corredores, elevadores, salas de espera, boletins médicos e, finalmente, a visita de uma hora. Na maioria das vezes, eu retornava sozinho porque um dos acompanhantes tinha permissão de ficar mais tempo.

À noite, como a visita era de meia hora, a companhia ficava por conta de amigas nossas ou de Priscila, minha cunhada. Era a matemática para adequar os horários de todos, variando rostos e histórias que alegrassem Beth na detenção hospitalar.

A situação entre eu e Seu Lauro se alterava aos sábados. Eu os visitava, ele e Dona Maria. Na conversa de homem, simbologia curiosa, tomávamos uma cerveja (ou mais). E era a hora de dialogar. Corrigindo... era uma entrevista de uma hora e meia, duas horas, em que eu fazia perguntas-chaves, instante em que ele colocava para fora tudo aquilo que o incomodava, toda a dor de um pai que se sente paralisado por ver a filha muito doente. Pela enésima vez, sempre de um jeito diferente, que impede e congela quaisquer chances de relaxamento. Acredite, você nunca se acostuma quando a dor anda descalça e estica as pernas na sala da sua casa.

O tom da conversa era decidido por ele. O início, o fim e o meio. Um depoimento espontâneo, marcado por expressões que ele utiliza somente nessas horas. Palavras que devem ser lidas como conectivos entre uma etapa e outra do desabafo.

Ele me chamava de Camarada. Nada de fundo comunista, mas um jeito carinhoso que indicava tanto proximidade quanto um cacoete linguístico. Camarada era um dos sinais para que eu ouvisse, aprendesse, entendesse que era um momento essencial. Camarada não sou eu. Camarada é seu interlocutor, quem tem o privilégio de ouvi-lo exposto, com opiniões, qualidades e defeitos. Meu cunhado Márcio é (ou já foi) um camarada também.

O segundo sinal de que a argumentação merecia olhar exclusivo era "Na Moral." Outra conexão entre dois pontos, a gíria que poderia vir acompanhada de camarada. Aí, o pensamento era decisivo. Camarada e Na Moral eram a luz amarela para uma verdade profunda.

Seu Lauro desandava a contar histórias pós-aposentadoria, da juventude, dos tempos da fábrica, da época em que trabalhou no necrotério, dos parentes, dos amigos do Bar Dois Irmãos, das filhas quando crianças. Mas eu sabia que, talvez inconscientemente, ele se preparava e me preparava para chegar ao assunto que nos uniu: a filha mais nova dele.

Eu apenas escutava. Ele me contava da infância, da primeira crise, da força de vontade de Beth para estudar e trabalhar, para se formar como assistente social e depois jornalista. Seu Lauro rodeava - aposto outra vez no inconsciente - para entrar nos detalhes dolorosos das crises e no esforço para dar conta delas, tanto de Beth como dos parentes mais próximos.

Seu Lauro não se dava ao luxo de parar para chorar. As lágrimas escapavam com discrição dos olhos avermelhados enquanto falava, enquanto me chamava de camarada e elogiava a perseverança da filha, apoiado em um número maior de "na moral" nas frases.

Seu Lauro é um homem de sua geração, incapaz de dizer não às filhas. Como muitos homens desta "turma", como meu pai também, ele jamais sai do estado de alerta, conhece o significado da palavra sacrifício e, por vezes, toma para si as rédeas de histórias nas quais não deveria fazê-lo. Apenas tento imaginar um homem assim tomado pela impotência que a lúpus pode provocar.

O mínimo que poderia conceder nessas conversas era escutar. Usar o mínimo de inteligência para assimilar, também como pai. Aqueles sábados à tarde exigiam que eu conhecesse mais ainda Beth pelos olhos e pela narrativa do pai dela. Que eu o conhecesse como alguém que sempre me tratou com respeito e que, sem dizer palavra alguma, me escolheu como cúmplice para compartilhar memórias, ou seja, partes dele mesmo, pedaços que compõem uma história individual e familiar.

Quase um ano depois, fico contente e, agora, me divirto cada vez que ouço a palavra camarada. Da penúltima vez, a pauta foi futebol. Da última, política brasileira.

Na moral, em todas elas Beth renasce como assunto, como prova de amor paterno. Melhor assim do que o silêncio próximo do constrangimento dentro de um ônibus que teimava em nos levar para um lugar, no ano passado, indesejável.


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