Ouvindo vozes


Araceli Go, no vocal; Walmir Olveira, à esquerda na foto

Marcus Vinicius Batista

Caminhávamos com certa pressa por causa de um compromisso de domingo à tarde. Nada urgente, somente mais um filme em DVD com duas amigas. Seguíamos eu e Beth naquela passada de dia de semana, sem motivo para tanto, por enquanto distraídos.

Na vizinhança, por duas quadras, reinava o silêncio de domingo pós frango de televisão, lasanha ou macarronada com molho de tomate. O silêncio pré-jogo do Corinthians ou pré-gritos do apresentador de nome aumentativo e seus dançarinos quase famosos.

Na terceira quadra, a voz nos empurrou para reduzir o ritmo. Olhamos um para o outro e começamos a procurar a origem. Só casas e uma imobiliária fechada. Era Tom Jobim, não sabíamos a música. Mas era bossa nova numa voz feminina. Ao fundo, bem baixinho, um violão. De vez em quando, atravessando a melodia, uns pássaros.

A segunda hipótese era a escola de inglês do outro lado da rua. No domingo, estaria fechada. Não havia data especial nem reação do público diante de uma voz tão bonita. A música acabou e não houve palmas. A vantagem é que a voz subia o tom, não por causa da cantora, mas porque estávamos perto dela.

De novo, Tom Jobim. De novo, a voz, o violão e um ou outro pio. Atravessamos a rua e descobrimos qual era a casa. Quando paramos no portão, a surpresa. De costas, quem cantava era Araceli Go. De frente para nós, Walmir Olveira ao violão. Os pássaros estavam espalhados em algumas gaiolas, impossível identificar os demais cúmplices da orquestra. 

Araceli e Walmir, em apresentação no Teatro Municipal de Santos

Walmir nos identificou e fez sinal com a cabeça. Em silêncio, admirávamos a voz de Araceli e sorríamos. Quando a música terminou, aplaudimos por instinto. Ela se virou para o portão e perguntou, surpresa:

— Quem é?

— Araceli, é o Marcão. E a Beth!

— Oi, Marcão, tudo bom?

Engatamos uma conversa rápida e seguimos adiante, pois o filme nos esperava e não queríamos atrapalhar o ensaio do dueto. No dia seguinte, feriado de segunda-feira e um churrasco marcado no prédio de amigos comuns. Chegando lá, descobrimos a razão do ensaio. Mais de uma hora de uma enciclopédia de vários momentos da Música Popular Brasileira.

Confesso que nunca tive longas conversas com Araceli. Por outro lado, tenho horas de estrada ao som da voz dela e do violão do Walmir, música suficiente para os dois lados do vinil, bonus track do CD e extras de DVD.

A primeira vez que a ouvi cantar jamais será reprisada e só me resta o saudosismo. Primeiro, estávamos juntos, com os mesmos amigos - André e Meire - em uma das mesas do Pierrot, bar que não existe mais. Segundo, fomos ouvir um craque que também se foi.

No final daquela noite regada a bolinhos de feijoada e chopp, Celso Lago chamou Araceli Go ao palco e, juntos, eternizaram seis músicas. Não me lembro a ordem delas, mas as imagens permanecem adaptáveis às vozes de ambos. Foi a última vez que conversei com Celso Lago antes dele morrer, em 28 de dezembro de 2013.

Araceli e Walmir sempre souberam presentear. Não escolhem hora e lugar à toa. A última vez foi no lançamento do livro do meu irmão André Rittes, na Estação da Cidadania. Com cinco minutos de show, uma senhora me parou na porta.

— É aqui que tem apresentação de chorinho. Eu vi no jornal.

— Não é chorinho. É MPB (como se chorinho não o fosse).

— É de graça?

— É, mas tem lançamento de livro também.

A senhora viu o show e gostou tanto que comprou o livro.

Durante a apresentação, um amigo encostou do meu lado e perguntou o nome da dupla. Depois da resposta, minha idiotice jornalística se manifestou na informação irrelevante:

— Ela é cega!

O amigo olhou para mim e disse: "É... não reparei!"

Realmente ... bastava só ouvi-la cantar e Walmir, tocar.

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