A noite de Valdo


Valdo Soares, à esquerda na imagem. Foto: Arquivo pessoal

Marcus Vinicius Batista

Segunda-feira é dia de trabalho duro na cozinha de casa, na Vila Edna, em Guarujá. As quatro bocas do fogão estão ocupadas. São duas panelas de arroz, uma panela de pressão com feijão até à boca e uma de carne. Mais tarde, no início da madrugada, a comida será distribuída pelas ruas da cidade.

A casa simples na Vila Edna é a residência atual de Valdo Soares e da esposa Alessandra. Os dois, com o auxílio de voluntários, tocam o Projeto Resgatando Vidas. Em menos de dois anos, o grupo retirou das ruas 43 pessoas, muitas delas hoje em tratamento contra dependência química.

Valdo Soares tem 40 anos, mas aparenta mais uns cinco, seis. O rosto apresenta certo desgaste pela vida antiga. Os cabelos daquele tempo também ficaram mais raros. Hoje, a barriga se esconde dentro da calça e aponta a mudança na rotina, no cenário, na própria alimentação. O medo das noites solitárias na casa a céu aberto acabou!

Quando eu o conheci, depois de muito ouvir falar dele, não associei o nome à pessoa. Quem me contou a história de Valdo nunca o descreveu. Não precisava, valia mais o relato. Na minha frente, um sujeito com mais de 1,80 metros, vestido de terno e gravata, delicado nos movimentos, envergonhado ao falar, sorridente com todos nas rodas de conversa, atento aos diálogos.

Depois de uns cinco minutos, Carlos Júlio, um amigo, me disse: "Esse é o Valdo, que dormia embaixo da marquise da loja." A loja é a Pap'Sport, que fica na rua Bento de Abreu, no Boqueirão. Valdo apenas sorriu e agradeceu a Carlos Júlio pelos conselhos. Palavra dele, conselhos. "E tenho que agradecer também ao Gabriel, irmão dele."

Valdo viveu por 25 anos nas ruas de Santos. Viciou-se em crack, chegou a 49 quilos. Os cabelos eram compridos e se misturavam com a barba. Dormia sob a marquise da loja, na época sem portão. Passava até uma semana sem tomar banho. Como qualquer morador de rua, Valdo dormia ao amanhecer e perambulava à noite ou permanecia vigilante durante a madrugada, por medo de tomarem suas coisas e de apanhar das "autoridades".

Um dos donos da loja, Gabriel Pierin, chegava pela manhã e via aquele corpo mal coberto estendido logo na entrada. Gabriel o acordava e dali brotavam algumas conversas, os tais conselhos sobre mudança de vida. Valdo recebia um café e, de vez em quando, ganhava roupas para que pudesse tomar banho - os chuveiros da praia eram o socorro imediato - e continuar o dia. 

Refeição pronta na casa de Valdo, via doações

O estalo veio alguns anos atrás. Valdo fez a curva e escolheu a outra rota da bifurcação. Ele obteve tratamento e largou o crack, conheceu Alessandra e se casou com ela. Passou a frequentar uma igreja no Guarujá e arrumou um emprego que o permite morar na casa onde prepara as refeições para pessoas que hoje refletem o espelho dele ontem.

Batemos papo várias vezes no sábado. Era o lançamento do livro Uma Estrela na Escuridão, do próprio Gabriel. Percebi, durante uma das conversas, que Valdo ainda não tinha o livro em mãos. Encostei na mesa onde Gabriel autografava, cochichei ao ouvido dele e recebi como resposta um sinal positivo de cabeça.

Fui até a outra mesa, apanhei um livro com Margareth, a esposa de Gabriel, retornei ao fundo do salão e entreguei o exemplar para Valdo. "É nosso presente, nosso agradecimento." Valdo ficou mudo, olhava para os lados e se voltava para a mesa de autógrafos. Os olhos se encheram d'água e ele murmurou: "Obrigado."

Meia hora depois, o auditório da Estação da Cidadania estava cheio para ouvir o testemunho de Andor Stern, um senhor de 1,60 metros e 87 anos que falaria dos horrores que sofreu em campo de concentração na Segunda Guerra Mundial. Ele é o "personagem" do livro do Gabriel.

No meio da mini-palestra, aquele sujeito de terno e gravata se levantou, fez sinal de reverência e, bem baixinho, fez uma pergunta a Andor. Tão baixo que teve que repeti-la. Andor o cumprimentou e agradeceu.

Após a mini-palestra, Valdo foi convidado - de surpresa - para o centro do auditório. Falaria sobre si próprio. Tímido, travou diante da plateia. Gabriel o auxiliou com diversas perguntas. Valdo pôde explicar porque sua trajetória havia mudado a partir de curtas conversas logo cedo, pela manhã, e auxílios de um comerciante de material esportivo e também autor de livros de História. Mas, por algum motivo qualquer, ele tomou pé da mudança e soube aproveitar os empurrões que muitos não recebem.

Aplaudido de pé por todos no auditório, Valdo sorriu. O livro debaixo do braço, o terno impecável, a barba feita e o cabelo cortado sem falhas, todas as peças de uma noite de reconhecimento. No dia seguinte, era hora de apertar o orçamento doméstico, colocar as panelas no fogo e trabalhar para não se esquecer daquela marquise e de quem ele era.

Obs.: Texto publicado, originalmente, no site Juicy Santos, em 20 de outubro de 2015. 

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