Lenços, seus documentos (Conversas com Beth # 13)



Marcus Vinicius Batista

Hoje é dia de quimioterapia. Segunda sessão, a primeira depois da internação na UTI. Passamos a semana, de certa forma, em torno disso. Conversas sobre as mudanças na dinâmica da casa pós-sessão, três visitas ao hospital, dribles na burocracia, consulta médica, hemograma, o cardápio que nos prepara para o desconhecido.

Sabemos como serão as injeções, uma parte deve ser via oral, os intervalos entre elas, mas ainda não decoramos as combinações de medicamentos. Não nos soou necessário. É como tentar decifrar o composto químico de uma bomba cujo timer se aproxima do zero. Nada grave até porque nos acostumamos com o aplicativo com despertador que nos lembra de tantas pílulas em tempos tão distintos ao longo do dia.

Embora o adversário seja a lúpus, as armas químicas para combatê-la ficam na oncologia. Já nos acostumamos com o olhar de surpresa quando se lê ou ouve a palavra quimioterapia. Seria sinônimo de câncer, que vem seguido da dúvida: mas por que quimio? Não era lúpus? Viramos aqueles professores dos antigos cursos por correspondência, capazes de dar um panorama geral de tudo, mas sem se aprofundar em nada.

Estar na oncologia é como estar na cidade das mulheres grávidas, quando a sua é gestante, claro. Quero dizer é que lá vejo com maior frequência mulheres como a minha. Mulheres e seus lenços na cabeça. Com o perdão da obviedade, seu novo visual, além de manter sua beleza com outro desenho, atraiu minha atenção para as mulheres com lenços. Vi várias até agora, como se elas sempre estivessem por perto, mas eu era cego ou egocêntrico demais para enxergá-las.

A segunda sessão de quimioterapia, fora os efeitos colaterais no aparelho digestivo, deve espantar de vez seus cabelos. E daí? O que me importa é como você se sente, e os sinais que você me dá me alegram, se o assunto são os cabelos. Na prática, é um problema secundário, que reduz minha tensão diante de quaisquer expectativas de sofrimento.

Começamos nossa história capilar com uma echarpe improvisada como lenço até que compramos um chapéu preto, numa loja de departamentos. Situação divertida e que permaneceu assim com o contato de outras pessoas. Elas reagiram com animação, você foi chamada de charmosa e o acessório te deixou mais elegante. Aqui, freio meu rompante de comentarista de moda. Você ficaria linda até com camiseta de candidato a vereador, de qualquer partido.

No último domingo, duas visitas, vários presentes. A primeira delas tinha um cheiro de redundância. O almoço seria na casa do meu pai e chegamos a comentar, brevemente, sobre os vários chapéus que minha mãe possuía. Mal sentamos na sala e meu pai apareceu com diversos chapéus, de cowboy ao panamá, da praia ao patrocinado. Você escolheu alguns e o experimenta-experimenta foi a pitada de humor antes do almoço. Voltou de chapéu “novo” para casa.

No final da tarde, fiquei feliz em conhecer uma colega sua de trabalho, a Denise. Ela teve câncer há uns 10 anos e resolveu nos visitar. Trouxe uma surpresa: vários lenços e gorros, alguns do tempo em que se curou da doença. Depois da quimioterapia, os cabelos dela nasceram brancos e a loteria em torno do futuro dos cabelos se transformou numa pauta divertida.

Os lenços venceram os chapéus e ganharam as ruas nos exames de segunda e na consulta de terça. Vimos, no hospital, outras mulheres como você, que carregam no lenço o símbolo de uma disputa que será vencida, só não sabemos quando.

O lenço é o cartão de visita de sua nova identidade, sempre em metamorfose, mas agora dirigida pelo imponderável biológico. O lenço é o recado para qualquer doença, de que não se abaixa a cabeça, apenas se cobre parte dela, justamente para se preservar uma vida antes da enfermidade, que acena como o tratamento é transitório.

Estar de lenço é ser vista na rua. Ser vista na rua significa que a vaidade e a estética são de outra natureza. O lenço representa a revolta contra o isolamento em casa, contra o estigma de quem seria menos porque atravessa a trilha espinhosa dos remédios e seus efeitos colaterais.

Olho para você de lenço, gorro ou chapéu e reafirmo a certeza de que não se ajoelhará diante do lobo. Cada modelo me indica que existe uma fauna de adereços, coloridos como a resposta a uma crise de saúde deve ser. Usá-los é abrir a porta para a vida pública. Usá-los é se expor como alguém que não abdicou da própria identidade; pelo contrário, você assume – pelo tecido que cobre sua cabeça raspada ou com mínimo cabelo – que identidade é adaptação, que a metamorfose jamais será estática, numa cama ou num quarto de hospital.

O lenço, nesta sexta-feira, é a fantasia da visita mensal à oncologia. Pode ser seu documento de entrada para um mundo nada saboroso, mas carrega a solidariedade com e de seus pares perante um passo a se dar com firmeza e sem pressa. Trata-se, se possível, uma só vez. E o lenço, como te presenteou Denise, será a arqueologia de uma cultura que se esvaiu e se refez depois de meses.

Esperarei, com a paciência que os tempos de hoje desenvolveram, a cor e o formato do novo cabelo. Seu sonho é que eles nasçam vermelhos, o que creio ser utópico. Na certeza do novo cabelo, meu conselho: um desejo que pode ser resolvido com uma visita ao cabelereiro; desta vez, com o poder da escolha e com outro tipo de química.

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