O intendente




Joana Soares Merlin 

Da casa grande, na esquina da Rua Cunha Moreira, já não se ouvia o mar. O reboliço era grande. Médicos e enfermeiras entravam e saiam, os filhos mais velhos e Ursula, a esposa do intendente Isaías Cândido Soares. Ele ardia em febre e gemia de dores num leito estreito do quarto simples.

A filha menor, Iracema, chorava pelos cantos. Tinha seis anos. Quem a levaria à escola, do outro lado da vila, se o pai já não podia se levantar, a mãe nunca saia de casa, e os irmãos não tinham tempo para ela, ciumentos dessa filha temporã, a favorita do pai? Quanto tempo ficaria esse pai, jogado como um trapo no quarto escuro que cheirava a remédios caseiros?

Ouvia os adultos cochichando pelos cantos, perguntando-se quando retornaria o mensageiro enviado a Santos para buscar o remédio recomendado pelo médico, o único que poderia salvar seu pai. Um dia, dois? O mensageiro tinha ido a pé, por falta de uma estrada de ferro ou de meios de transporte mais rápidos.

O padre fora chamado, ainda que todos esperassem a melhora do doente. Fazia-se o tempo uma eternidade. Crescia o desespero à medida que o doente piorava. E o mensageiro não chegava! Quando voltou finalmente, era tarde demais.

Ao fechar os olhos para sempre, lembrou-se o moribundo de tudo que construíra, com tão pouco, pela vila que tanto amava. O novo traçado das ruas, o Gabinete de Leitura. E tanto mais!

Alheia a tudo, a menina chorava. Que consolo seria, para ela, a bandeira que mais tarde envolveria o simples caixão de madeira de seu pai? Que importava a banda que acompanhou o cortejo, seguido por tanta gente? Ele já não estaria lá, para mimá-la.

Assim foi o fim de Isaias, meu avô! Sua morte prematura causou dor e orgulho em minha mãe. Orgulho também, pois a vida dele foi curta, mas rica em experiência e exemplos. As pequenas sementes, plantadas por ele e seus contemporâneos, floresceram na Itanhaém de agora!

Obs.: 5º texto a partir do curso "Como escrever crônicas", ministrado no Gabinete de Leitura, em Itanhaém.


Comentários

Joana, prazer imenso ler você mais uma vez! Seus textos sempre me encantam. Sua prosa como suas poesias ricas em descrições e conteúdo, prendem e nos transmitem beleza no ver, contar e forma de dizer com força e poesia.
Obrigada pela leitura aprazível.
Mariza C.C.Cezar