Bem geladinho (A vida começa nos anos 80 - # 3)




Ricardo Rugai

Não era mendigo e muito menos um dos vários bêbados que andavam pelo Saboó, em Santos. Era um biscateiro, como se dizia, vivia de bicos, ora consertando um encanamento, ora ajudando numa obra, sem paradeiro profissional. A vida toda fora assim, preferia isso a ter emprego fixo, trabalhar todo dia e ter patrão.

Pagava um preço. Às vezes, enchia o bolso numa semana e antes de chegar o domingo o dinheiro lhe escapava entre os dedos. Juntar jamais, comprar algo para garantir o futuro nunca. Tinha casa, sem escritura, sem papel, sem aluguel, conta de luz ou água.

Apesar da pobreza, nunca dispensou a cerveja. Encostava no balcão e o braço com vida própria logo pousava perto de um copo. Cultivava um calo junto ao cotovelo pelo movimento repetido por anos. Ele sempre pedia Brahma, que julgava superior. Acostumou-se a isso e dizia ao dono do boteco:

— Bem geladinha! E devolvia irritado as mal geladas.

Vivia assim desde moleque. Estava com 47. Sem mulher, sem saber dos quatro filhos que fizera pelo mundo. O trabalho não aparecia como antes. No passado, até fugia do trampo, mentia dizendo que tinha outro serviço na frente e passava dias, até semana toda, curtindo praia.

Agora a coisa era outra. Além do trabalho não dar as caras, ele não tinha ânimo de procurá-lo. Estava velho demais para mudar, era o que dizia. Sem trabalho, comia um dia na casa de um, visitava um amigo no outro. Não tinha gastos. Mas faltava o da cerveja...

— Dinheiro... dinheiro não tem ... a frase era cada vez mais ouvida pelos bares do Saboó e Chico de Paula.

Como sempre parava nos botecos, encostava no balcão e com a eterna naturalidade pedia – Uma Brahma! ... Bem geladinha! A garrafa vinha, bem geladinha, ele sorvia o primeiro gole com aquele prazer que somente os bons bebedores conhecem, aquele primeiro gole em dia de calor. Bebia uma, às vezes duas ou três, mas não passava disso. Não bebia cachaça. Depois, saia caminhando devagar.

Não pagava mais.

Nas primeiras vezes, os donos de boteco da área pensaram que era esquecimento, mas já entortavam a cara. Xaíco chegava e mandava a letra:

— Uma Brahma! Bem geladinha!

Ela vinha, ele bebia e ia saindo, sem mais nem menos, nem pedia prá pendurar, como se beber umas cervejas fosse uma espécie de direito inerente que constava na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Os botequeiros da área se enfezavam:

— E aí, Xaíco? Não vai pagar de novo?

Ele olhava e respondia tranquilamente:

— Dinheiro não tem... e saía caminhando em passo lento. Um ou outro perguntava se ele queria pendurar, mas Xaíco só respondia:

— Não adianta porque... dinheiro não tem...

Os chapéus de Xaíco duraram quatro meses. Sempre revezando o prejuízo nos botecos, cada dia bebia num diferente, mas não deixava de ir a cada um do bairro pelo menos uma vez na semana.

Um dia, Xaíco sumiu. Acharam o corpo dele peneirado por 11 balas de uma pistola ponto quarenta. Diz a lenda que antes de morrer não suplicou, não correu e nem prometeu pagar. Só pediu ao “encarregado” uma última vez:

— Uma Brahma! Bem geladinha!

E avisou antes:

— Dinheiro não tem...

Antes de executar a missão, o sujeito esperou pacientemente que ele bebesse os 600 ml da garrafa, conferiu o pente, destravou e fez o serviço. Saiu tranquilo, pensando na metade do pagamento que faltava e na Brahma “Bem geladinha!” que iria beber ali perto mesmo.

O cadáver de Xaíco foi despejado ali mesmo, no IML do Saboó, atrás da favela do Pantanal. Na chegada, um dos funcionários berrou:

— Chegou mais um presunto!

O parceiro, vendo que era o Xaíco, gritou de volta:

— Bem geladinho? Caíram na gargalhada e decidiram tomar uma em nome dele após o trabalho.

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