O senhor mutilado


Marcus Vinicius Batista

Com quase 100 anos, ele testemunhou as mudanças da cidade. Acompanhou a troca dos cavalos pelos bondes, das ruas de terra pelos paralelepípedos e, depois, pelo asfalto impermeável. Das casas em estilo português pelos prédios de três andares e, então, pelos espigões de ferro e concreto que aprisionam o vento e distribuem calor.

O senhor se instalou quase na esquina da rua Oswaldo Cruz com a avenida Epitácio Pessoa, numa época em que ruas e avenidas não tinham esses nomes. Ele estava ali, firme e enraizado no Boqueirão, numa época em que Oswaldo acabara de vencer uma epidemia e Epitácio provavelmente ainda ocupava a Presidência da República.

O senhor quase centenário, de nome Ingazeiro, se transformou – pouco a pouco – em um daqueles personagens anônimos da rotina da cidade. Ele era – para muitos moradores ou meros passantes – uma respiração contra o bafo quente e a umidade. Para um camelô de tantos anos, ele significava a cobertura da loja a céu aberto, a engenharia natural para manhãs de chuva e tardes friorentas.

O Ingazeiro, hoje, é um cadáver numa esquina qualquer. Serviu como isca para uma armadilha da política. Ele foi acusado de atrapalhar a rede elétrica - aliás, chegou antes dela – e recebeu o convite para “conversar” com as autoridades. Um diálogo de uma só voz que o convenceu de que seria essencial aparar as arestas, cortar as pontas, desfazer um mal entendido.

O senhor quase centenário acreditou que seriam cortados apenas os cabelos, fazer a franja que incomodava uma farmácia de esquina, que se multiplica mais rápido que o crescimento de galhos e folhas. No último dia 20 de abril, o Ingazeiro recebeu de braços abertos e cabeça erguida visitantes armados, em seu papel de todos os dias.

Talvez como comemoração antecipada e macabra do Dia de Tiradentes, o Ingazeiro foi condenado à pena de morte por esquartejamento. As máquinas sem cérebro de comando o executaram. De saída, mutilaram os braços do senhor centenário. Com a trilha sonora das motosserras, o decapitaram até a base do pescoço.

Como Tiradentes, o Ingazeiro agonizou e assim ficou em praça pública (opa, numa esquina) para que os inconfidentes soubessem até onde os carrascos podem chegar caso seus interesses sejam contestados.

O recado e a tortura duraram três dias. No dia 23, um caminhão encostou para a retirada do corpo. Aí veio a contraordem dos moradores em luto. “O corpo fica onde está! Acreditamos no milagre da ressurreição!” Mesmo que o senhor centenário não sorria de novo, sua anatomia servirá de estudos de cidadania.

O tronco que restou poderá florescer como ícone de uma Santos que optou – no mais rasteiro provincianismo travestido de progresso – mudar de verde para cinza. Uma descoloração lenta, gradual e irrestrita, no linguajar autoritário.

O corpo segue inerte diante da fachada farmacêutica em laranja e azul. Na mesma calçada, os chapéus-de-sol sobrevivem e mascaram a rede elétrica. A sorte deles é que não há choques de interesses ou de realidade. Até quando?

A Prefeitura alega que a Farma Conde participa do Programa Adote uma Praça. Como um ferreiro que carrega o espeto de pau, não se importou com quem morava ao lado de casa. A farmácia prometeu doar 10 árvores, que seria o dobro do habitual neste tipo de acordo. É como prometer a concepção de dez bebês em troca de um assassinato. Olho por olho, poda por plantio.

O Ingazeiro, árvore-testemunha-ocular da Santos que trocou de roupa, perdeu a Semana Santa, sem milagres. Hoje, o senhor esfria morto como símbolo urgente do modo de vida do poder.

Comentários