A mulher-peixe


Leila Borges, na Baía de Santos. Foto: Marcos Piffer

Marcus Vinicius Batista

Texto publicado, originalmente, na edição 7 da revista Guaiaó. 

Qualquer criança aprende, nas aulas de Ciências, que a maior parte da Terra é composta de água. Na adolescência, ela vai entender que o corpo humano é feito, na maior parte, pelo mesmo líquido. Se alcançar a universidade, deverá compreender que o comportamento humano envolve não apenas biologia, mas também a relação ambiental.

Leila Borges Martins, de 52 anos, personifica as três lições elementares. Ela só não tem nadadeiras e guelras por um desvio da evolução humana. Guarda-vidas há cinco anos, ela trabalha todas as manhãs no Complexo Esportivo Rebouças, onde acompanha as aulas de hidroginástica e natação.

Leila vive na água, ainda que não precise salvar pessoas. À noite, treina na Universidade Santa Cecília. São três mil metros ou duas horas diárias de braçadas. O treinamento se justifica. Nos finais de semana, quando não disputa provas de travessia em mar aberto, ela se junta a grupos de amigos para justamente ... nadar no mesmo mar que a acolhe desde pequena. Chama de passeio aquático. A guarda-vidas nada até no último dia do ano, com mais 200 pessoas. “Levamos champanhe e celebramos.”

A relação com o mar começou aos três anos. Filha de um sargento do Exército, Leila morava no Forte Itaipu, em Praia Grande. Aprendeu a nadar no canto da praia, ao lado do hoje chamado Parque Estadual Xixová-Japuí. “Brincava de casinha nas pedras. A praia era toda minha.”

Filhos de peixe ... - Navegar pelas piscinas como atleta foi o caminho natural. A partir dos 10 anos, passou a defender o Clube de Regatas Saldanha da Gama. Aos 18, casou com um dos técnicos. Teve dois filhos, Keyton, de 30 anos, economista, e Keyner, de 33, fisioterapeuta. Ambos foram nadadores e também competiram por clubes de Santos.

Com o divórcio, foi trabalhar em banco. Ficou lá por uma década, sem deixar a natação. “A água faz parte de mim. Fico angustiada se estou fora dela.” No banco, conheceu o segundo marido, José Artur.

Ironicamente, ele não era nadador. Por outro lado, a acompanhava nas competições. Para ela, José Artur era polido até quando reclamava. Numa das travessias, disse depois de tanto esperar: “já li o Estadão todo.” Nos finais de semana, o marido assistia a filmes ao lado da piscina para que ela pudesse nadar. “De vez em quando, ele olhava para ver se estava tudo bem na água.”

Há nove anos, Leila enfrentou a travessia mais turbulenta. José Artur morreu de infarto do miocárdio aos 52 anos, a mesma idade dela hoje. Para não se afogar, Leila mergulhou na piscina. “Nadava chorando. A natação evitou que eu tomasse remédios. Hoje, com exceção de uma pessoa, não tenho amigos que não sejam nadadores. E estou em paz com a água.”

Travessias - Em 2007, a vida profissional de Leila mudou de curso. Ao ver uma faixa na orla da praia, prestou concurso para guarda-vidas. Como em travessias de mar aberto, eram centenas de candidatos; no caso, 400 concorrentes. Venceu. Acabou aprovada na prova de natação, mas reprovada na corrida, prévia do que aconteceria na vida em terra nos anos seguintes.

Leila permaneceu três anos na praia até se transferir para o Complexo Esportivo Rebouças. A mudança veio a calhar por conta de uma lesão crônica no menisco do joelho direito. Até agora, foram seis médicos, mais de uma dúzia de infiltrações e dores para correr, caminhar longas distâncias ou ficar em pé por uma hora. Por enquanto, ela aposta em tratamentos alternativos à cirurgia. Se operar o joelho, Leila ficará três meses sem nadar, mais os sete meses de fisioterapia. “Não vou aguentar.”

A guarda-vidas ameniza as dores com a própria natação, além de pilates e musculação. As aulas de pilates sequer exigem caminhada, já que Leila mora no mesmo imóvel onde fica a academia do filho Keyner. Ou seria o contrário?

Ela não tira os olhos da água nem fora dela. Durante a conversa com a revista, ela pediu licença para orientar um aluno, na casa dos 60 anos, que reclamava de dores no braço por causa de um tombo. “Dá uma nadadinha que melhora tudo.” O idoso seguiu o conselho e, meia hora depois, deixou a piscina. Quando passou por Leila, sorriu e agradeceu.

Agricultura e piscina - O Complexo Esportivo Rebouças parece o quintal da casa dela. De fato, ao lado de uma das piscinas, Leila montou uma horta e um pomar, que abastecem professores e alunos. Dali, saem manjericão, capim limão e frutas também para os pássaros, de sabiá a sanhaço, que a visitam todas as manhãs.

Hoje, Leila quer se arriscar em travessias fora da região. Repetir a viagem que fez à Itália, em 2013, para disputar um prova com seis amigas. Na ocasião, ficou entre as 50 melhores. Deixou passar uma travessia em Portugal porque não queria ir sozinha. “E sou dependente de técnico.” Quer engrossar a caixa de medalhas, que ficam na casa da mãe. “É ela quem sempre me apoia. E, às vezes, me mãetrocina.”

Leila, além de personificar as aulas de Ciências, mantém viva uma das máximas freudianas. Na biografia dela, nada é por acaso, seja no trabalho, seja na vida pessoal. Ou como diz a dentista dela: “correm cloro e água do mar no seu sangue. Em dia de chuva, você mergulha até em poça d´água.”

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