Julia, a velha dura


Beth Soares


Julia agora é velha. Completou 80 anos há alguns dias. Não teve festa. Faltavam motivos para comemorar. Não se lembrava de algum dia haver se sentido tão só. Nem quando enviuvou, aos 25 anos. Decidiu não mais se casar ou sequer namorar novamente. Foram tantas surras que ela achou melhor assim. Sem filhos, dedicou-se à irmã temporã que, na época da morte do marido de Julia, era recém-nascida. Doou a essa criança seu tempo, sua herança e seu amor. Ajudou-a a se criar e criar suas filhas. E lá se foram 50 anos.



No mês passado, Julia se sentiu cansada. Não só aquele cansaço metafórico, natural da vida, mas o literal. Descobriu uma doença cardíaca grave, sem chance de cirurgia ou algo que se assemelhe à cura. Não sairia ilesa. Chamou três de suas amigas e se despediu. As três mulheres, assim como a família de Julia, acreditaram que era o fim: apenas mais algumas horas na Terra; no máximo, alguns dias.

As sobrinhas de Julia, filhas de sua irmã temporã, aparentemente dedicadas, estavam também conformadas. Informaram às amigas da idosa que não queriam que ela fosse para uma clínica. Preferiam que passasse os últimos dias em casa.

Julia, contrariando o desfecho desenhado pelo misto de medo e ansiedade dos que a cercavam, decidiu continuar viva.

Mas as amigas, embora tentassem, não conseguiam mais visitá-la. Sempre havia uma desculpa ensaiada pela irmã de Julia, do outro lado da linha: num dia Julia estava muito enfraquecida. No outro, longe do telefone. No seguinte, estava dormindo...

As amigas perceberam que as ligações irritavam a irmã e as filhas dela. Descobriram que outros familiares receberam as mesmas desculpas. Infelizmente, outras descobertas surgiram. Julia juntara durante anos uma pequena fortuna – se tomarmos como base sua renda mensal: um salário mínimo - , para pagar velório e caixão. Em poucos dias, R$ 6 mil haviam escoado em roupas de grifes femininas, salões de beleza, sapatos, restaurantes caros e um mundo de frivolidades. 



Julia, acomodada no sofá da sala, tão velho quanto ela, não apreciou nenhuma dessas regalias. Doeu nela. E quem tinha por ela real apreço também lamentou. Foi uma espécie de morte, ainda em vida.

A que ponto pode chegar a necessidade de consumir? Um desejo tão forte, tão urgente, que soterra relações aparentemente profundas, laços antigos, vínculos que até aquele momento haviam resistido a tantas e tantas tempestades ao longo de uma vida.

Não desejo com esta história contribuir com a ideia simplória de que idosos prescindem do mesmo tratamento dado a uma criança. Infantilizá-los é o cúmulo do desrespeito à sua dignidade. É idiotizá-los. E também não acho que todos se tornaram santos porque viveram muito. O jovem mal-humorado, se não quiser se transformar ao longo da vida, vai ser o idoso mal-humorado, pois os comportamentos tendem a se acentuar com o passar dos anos. Com o jovem bonachão, com o mau-caráter, o espirituoso, o agressivo, o contemporizador, o egoísta, o protetor ou o superficial, acontecerá o mesmo. 




Quando conto a história de Julia, quero pensar no valor das relações de raízes profundas, construídas e cultivadas por longos anos, e no seu contraponto: o que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman chama de “modernidade líquida”. Nela, as relações são extremamente suscetíveis às pressões e, assim como os líquidos, não conseguem manter a forma por muito tempo, sendo impedidas - pela sua própria dinâmica de obsessão apenas pelo prazer imediato - de se solidificarem.

Julia viu a irmã e as sobrinhas liquefeitas. Quando submetidas à pressão do luto iminente, da possibilidade de não mais ter nenhum dos benefícios trazidos pela existência dela, se agarraram ao prazer momentâneo que Julia poderia ainda oferecer-lhes: o dinheiro, passaporte para a satisfação individual, o consumo. Foi uma reação automática apertar o botão para desligar a censura, a culpa. Nada valeu mais que o próprio bem-estar, a própria felicidade, ainda que fugaz.

A velha Julia desistiu de morrer, só para assistir ao mundo ser diluído. Agora, ela está um pouco mais firme. E bem mais dura. No bolso e no coração.


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