Totó e a tela branca


Foto: Paula Cristina Cagnani Fernandes

Enquanto tudo não estava acomodado, ele cruzava a sala com ansiedade. O sol lá fora atravessava a tela branca; na verdade, um simples lençol, o que impedia o início da exibição do filme. Meia dúzia de espectadores conversavam alheios ao problema, sem perceber que ele e um dos funcionários da Gibiteca de Santos quebravam a cabeça para solucionar um imprevisto que não dependia da estrutura do lugar. 

Depois de meia hora e alguns sacos plásticos pretos como isolante para a luminosidade, todos se acomodaram para assistir ao filme “Uma História de Amor e Fúria”, animação brasileira de 2012 dirigida por Luis Bolognesi e vozes de Selton Mello, Camila Pitanga e Rodrigo Santoro.

Não vou me ater à sinopse da história, à qualidade da produção, ao desempenho dos atores, ao gênero do filme, entre outras obrigações de uma resenha cinematográfica. O que me importa aqui é a travessia, o caminho que nos leva ao cinema-oásis. O filme, perdoem-me, representa mera figuração.

Nas primeiras cenas, ele se sentou. A bufada me indicou o alívio. Olhei para trás e vi que os olhos dele brilhavam, duros e sem piscar, como o menino Totó a cada filme exibido em Cinema Paradiso, clássica obra italiana de Giuseppe Tornatore.

Seria injusto – e uma demonstração de cegueira – não entender que o cinema acompanha André Azenha, o Totó que cresceu, como uma sombra. Aposto que ele se renova a cada sessão semanal, espalhada por inúmeros cantos da cidade de Santos.

André Azenha é um jornalista. Mais do que isso, encarou como missão profissional – e desejo pessoal – pular o muro da informação que algema muitos colegas de profissão. Para ele, cinema é mais do que um espectador sentado numa tela escura com um saco de pipoca em uma das mãos e um refrigerante na outra.

Cinema é ação social e ato de generosidade. Cinema precisa do ar-condicionado dos shoppings, mas também se exibir em qualquer endereço onde pessoas possam ser reunidas, sejam sentadas no chão, em cadeiras escolares, de bar ou de plástico.

Em meados de 2013, Azenha conseguiu incluir no calendário cultural da cidade o Cine Comunidade. O nome é autoexplicativo. Ele crê – basta um diálogo de cinco minutos sobre cultura em geral ou cinema – que a arte só se faz viva quando itinerante e ecumênica.

O Cine Comunidade não escolhe lugar por conforto. Escolhe por meio da gente que está disposta a uma experiência, eventualmente inédita. Os filmes ressuscitam de suas caixas de DVDs em creches, salões comunitários, auditórios e salas de aulas.

O Cine Comunidade também não opta por faixa etária exclusiva. De crianças a velhinhos, o público só precisa de um requisito: o desejo de comungar em torno da tela branca e de um projetor.

O repertório tem um fundo educativo, sem ser professoral. Educar, no Cine Comunidade, jamais seria ensinar. Soa mais como compartilhar, em que se dividem as impressões e as histórias dos espectadores, intercaladas e em solidariedade à mensagem do filme da semana.

Nas escolhas do cardápio, prevalecem as obras que permitem boa conversa depois, daquelas que sujeito vai carregar as palavras na bolsa a caminho de casa. Não há overdose de enlatados (como dizia a minha avó) norte-americanos, e sim produções com algo a dizer, sejam nacionais, japonesas, europeias e, claro, norte-americanas.

André Azenha é vistos por muitos como jornalista, um assessor de imprensa e crítico de cinema competente. É um erro reduzi-lo a essas qualidades. Outros o enxergam como produtor e agitador cultural. Nada mais ingênuo do que entendê-lo assim. Azenha é um humanista, alguém que gosta de gente e necessita – como trabalho e sacerdócio – conviver com pessoas, dialogar com elas, ouvi-las, independentemente de suas posições políticas e sociais.

Neste sentido, o cinema é o alimento, como uma hóstia que aproxima sujeitos, sem levar em conta seus pecados, heresias, doutrinas e crenças. Mas não caia da armadilha de supor que o Cine Comunidade seja uma espécie de culto. O que testemunhei não foram milagres, pregações, exorcismos ou pedidos de oferta.

Quando estava no Cine Comunidade, me lembrei de uma entrevista que assisti no Roda Viva, programa da TV Cultura. A conversa era com o diretor gaúcho Jorge Furtado, diretor de curtas como “Ilha das Flores” e longas como “Saneamento Básico” e “O Homem que Copiava”. Quando perguntado sobre o futuro do cinema, ele respondeu algo como: “enquanto houver tela branca e pessoas dispostas a assistir a um filme, haverá cinema”.

Naquele sábado à tarde, numa Gibiteca refém do sol e cercada por turistas, vi cinema. Vi uma arte a serviço de qualquer pessoa. As portas abertas para ver um filme e conversar depois sobre a obra e o que aparece sem agenda prévia. Tudo ideia de um sujeito que cresceu como Totó, viciado em histórias em movimento, mas com a diferença de que – ao contrário do Totó da ficção -, André Azenha não foi embora para voltar e perceber o quanto amava seu próprio Cinema Paradiso.

Obs.: Este texto foi publicado originalmente na coluna Entrelinhas Caiçaras, no site Culturalmente Santista. 

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