O ronco de boa noite


Consegui frear e engolir as palavras antes que escorregassem pela língua. “Filho, vou sempre te proteger.” Não sei explicar minhas motivações nem porque tive vontade de pronunciar a frase. Talvez seja a fase sensível, na qual você se agarra em detalhes, dialoga pelas entrelinhas, chora pelos cantos, briga com os próprios fantasmas e sorri com as conversas improváveis. 

Vini, como qualquer criança de 3 anos, precisa de rituais para adormecer. Quando estamos na casa dos meus pais, deitamos lado a lado. Fico com a cama de solteiro. Ele, com a cama de baixo.

Assim que deitamos, Vini jura que está sem sono, mas me pede para cobri-lo. Damos o beijo de boa noite e fazemos o combinado: passear, brincar, jogar bola, tomar sorvete, qualquer coisa que será esquecida no dia seguinte, atropelada por outros acontecimentos tão ou mais importantes. Ou que será feita mesmo, sem que o combinado seja mencionado. O acordo é selado com um aperto de mão, um discurso de eu prometo e outro beijo.

Como último passo, digo: “Eu te amo!” “Eu também te amo, pai!” Confesso que é reconfortante ouvi-lo, mesmo que a resposta seja automática. Para mim, é rigorosamente irrelevante que meu filho de 3 anos desconheça o significado das palavras.

Engraçadas, poéticas, confortáveis, quaisquer palavras são a existência concreta de alguém que você não conseguirá observar sempre. Você as carrega, como rastros que te marcam, ainda que seus autores existam para cumprir o clichê profético da vovó. “Nós os criamos para o mundo.”

O ritual não termina num capítulo só. Ainda não é a hora de dormir. Vini pede, como qualquer criança de 3 anos, se pode dormir na minha cama. Pedido aceito, ele joga as cobertas de lado, sobe na minha cama e se deita sobre o meu braço direito. Não dura 30 segundos, um minuto, ele me pede como se tivesse formigas na bunda. “Pai, posso dormir na minha cama?”

Vini escorrega para a cama de baixo, repetimos o ritual das cobertas, do aperto de mão, do beijo, desta vez sem combinações. A pilha desliga na sequência.

Acreditei, por ingenuidade, que não repetiria com Vini minha sina de pai. Percebi, quando Mariana nasceu, há quase 11 anos, que jamais dormiria do mesmo jeito. Não me refiro às madrugadas de amamentação – não minhas, claro, mas era o sujeito do transporte infantil. Não me refiro às neuroses de pai de primeira viagem, que seguia até o berço para verificar se minha filha respirava. Ou o pai dos sustos, que julgou ter um ladrão no apartamento, só porque a filha resolveu abrir a geladeira de madrugada para tomar água.

Depois de 11 anos, ainda aguardo pela utopia da hibernação. Sei que nunca mais terei uma noite completa de sono. Só mudam as fases deles, meus métodos, e as preocupações com ambos. Ainda virão as madrugadas das baladas, as viagens, as festas, adaptações que sempre serão tanto prazerosas por vê-los crescer como preocupantes por não conseguir protegê-los de tudo.

De fato, aplico uma injeção de racionalidade para me convencer que eles estarão preparados para ultrapassar o batente da porta de saída. Porém, a dose é sempre insuficiente para quem, no fundo, crê que pode (ou poderia) dar um passo a mais. É a máxima de mãe: “Eles são livres, desde que você saiba onde estão.”

Nesta noite, não prometi a proteção impossível ao meu filho. Como compensação, sem saber o porquê, entreguei o eterno naquele momento. “Vini, eu te amo.” Como abandono da resposta mecânica, ele emitiu um pequeno ronco e me abraçou como quem se aconchegava para me surpreender mais uma vez. 

A cama seria uma só, pelo menos por parte da noite. Depois deste texto, ele escorregaria para a cama de baixo, porque preciso descansar um pouco, até o próximo “pai, quero fazer xixi.”

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