O jardineiro fiel

O sofá é o último símbolo de um tempo que virou jardim

Rinaldo, até dois anos atrás, era um aposentado. Não era o clássico inativo ativo brasileiro, que compõe rendas, faz bicos e apela para empréstimo consignado. Ele tinha feito carreira em escalões mais baixos da Codesp. Desde o último dia de trabalho, nunca mais voltou ao Porto de Santos. Aposentou-se de tal forma que os dias se resumiam à garagem do prédio onde mora desde que se casou há 35 anos. 

Embora resida na avenida Pedro Lessa, um dos principais corredores de comércio da cidade, Rinaldo só vende a própria paradeza. Para cortar as raízes da garagem, outras duas moradias: o boteco do outro lado da avenida e as compras de última hora na vendinha.

Como facilidade, os dois endereços ficam na mesma calçada, o que é o paraíso para quem ora por uma viagem só. Rinaldo se transformou no homem dois em um, desde que a esposa tivesse paciência para esperar pela entrega da lata de tomate depois que a garrafa de cerveja secasse.

As conversas de Rinaldo também flertavam com a inércia. Era papo de boa gente, simpática e disposta a ajudar com sacolas de compras, empurrar carro que não pega, cuidar dos netos alheios. Só que não saia do repertório “Hoje vai chover”, “Hoje está calor”.

A previsão do tempo funcionava como pauta única para todos os visitantes, moradores e até desconhecidos que tocavam o interfone de um dos apartamentos. Alguns moradores o cumprimentavam em movimento para evitar que o comentário climático virasse um quadro de meteorologia de telejornal.

Se dissesse que Rinaldo cansou da vista da garagem, mancharia a dignidade do sujeito. Ele continua por lá, todos os dias, mas mudou de vida há dois anos. Não bebe mais. Teme pela saúde. Só o cigarro segue como companheiro de vigilância no térreo.

A nova profissão nasceu quando ele ficou impedido de atravessar a avenida. Nada de boteco ou vendinha. Abandonar a cevada foi efeito colateral. Ele ficou incomodado com o canteiro que dividia a vida dele. As duas pistas da avenida viraram um depósito de lixo informal, renovado a cada 24 horas a partir da passagem do caminhão coletor.

Rinaldo entendeu que, se plantasse mudas ou colocasse vasos, o lixo desapareceria. Quem o conhecia acreditou que era um passatempo para fugir da garagem. Quem estava de passagem o olhava como se fosse o louco do bairro. Ele recebeu um único apoio. O pastor de uma igreja a 200 metros do prédio de Rinaldo resolveu colaborar e promover o milagre da multiplicação do jardim.

A novidade provocou comentários, mas sem ajuda extra. A história alcançou este cronista, que a publicou no jornal. Outro jornalista leu sobre Rinaldo e o episódio foi parar na TV. O aposentado, agora, era jardineiro. O jardineiro, agora, era a celebridade do mundo de duas quadras.

Comerciantes meteram a mão no bolso. Vizinhos arranjaram novas mudas. A esposa e os filhos falaram com orgulho do urbanista da família. O jardim dobrou de extensão. Os moradores mais sensíveis, que lamentaram a perda de um abacateiro e de outras árvores frutíferas nos últimos anos, viram nele uma esperança de ressurreição da velha rotina interiorana.

Rinaldo não ligou para o assédio. Falou disso só uma vez, e com vergonha. E entendeu que a casa de ferreiro não poderia ter espetos de pau. Até poderia, desde que segurassem novas plantas. Chamou um vizinho também aposentado e eventual colega de instituto informal de meteorologia. Pintaram as pilastras, a caixa do correio e o abrigo do medidor de água. Tudo de branco. Comprou vasos, arranjou outros na vizinhança.

Os carros, que ocupam o centro da garagem, ganharam a companhia de dez vasos, de meia dúzia de espécies diferentes. Todos os vasos também foram pintados de branco, com restos de tinta de reformas inacabadas no prédio. Ninguém reclamou. Como cereja do bolo quente, conseguiu com o vizinho um sapo e um caracol, daqueles que aguardam pelos anões para amarrar o cenário do jardim.

Hoje, depois de um mês, Rinaldo intercala dois assuntos: o clima e as plantas. É claro que ambos se cruzam e garantem cinco minutos de boa prosa, a única coisa interiorana numa avenida que cheira a porto. Os anões ainda não apareceram, mas meu filho – com seu metro de altura – faz o pequeno papel, pois fica louco para brincar com o sapo e o caracol cada vez que atravessa a garagem. 

* Texto publicado originalmente na coluna Entrelinhas Caiçaras, no site Culturalmente Santista.

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