A boca virgem


Ainda não tenho 40 anos, para sonhar com a perda da virgindade, como pregam as comédias do cinema norte-americano. Também não tenho dinheiro suficiente para desejar - como 20º e tanta plástica - a reconstituição da primeira vez, como prometeu a modelo de fama carnavalesca e coleção de cirurgiões. Existe, é claro, uma barreira anatômica para que eu volte à pureza dos contos de fada. Até porque o momento é muito mais lobo derrotado pelos três porquinhos do que Cinderela. 

Minha virgindade é somente oral. Ou melhor, bucal. Ao colocar aparelho nos dentes, me sinto obrigado a rever conceitos sobre a vida. Nascem as perguntas mais elementares. O que posso comer? Como? Quando?

Comer virou um ato monástico. Olhar para a geladeira ou para a despensa de prateleira única e refletir, como se estivesse diante de uma barraca de feira. É duro? Vai dar trabalho para mastigar? E para escovar os dentes depois? Não há impulso. Só conformismo.

Do monastério à paranoia. Cheguei a me lembrar do tempo em que as pessoas de aparelho entravam numa escala evolutiva e se aproximavam de cavalos. Com freios e tudo. Pensei em discrição. Nada de ferrinhos coloridos. Transparência na vida. Com o fim do lapso, as lembranças foram substituídas por preocupações mais práticas e mundanas.

Minha irmã foi direta. “Você vai ter que beijar diferente!” Bom, se beijar ainda está garantido, vale o esforço de carregar o ferro. Mas e se o clima esquentar? A última coisa que desejo é deformar as expressões faciais de minha namorada. Relações sadomasoquistas não são meu forte.

A boca virgem poderá apimentar o relacionamento. Recomeçar é sempre interessante, com novos horizontes e outros clichês românticos. Que a criatividade seja uma nova parceira. Até porque certos exercícios ainda podem ser feitos, com adaptações. Movimentos que nunca se esquece, mais vívidos do que andar de bicicleta, e com a vantagem de ser bem mais prazeroso.

Minha namorada me alertou. “Você vai babar muito quando dormir!” A previsão de Mãe Beth (Dinah) foi furada. Não babei. Ou pelo menos não localizei a enxurrada entre travesseiros e lençóis. Pelo contrário. Precisei de água, por sentir a boca ressecada. Os dentistas deveriam, neste caso, ganhar uma ajuda de custo dos nefrologistas. Rins funcionando às mil maravilhas.

Os dentistas também deveriam receber uma comissão dos endocrinologistas. E amostras grátis de fabricantes de sopas, cogumelos, sachês de proteínas e outras poções milagrosas para emagrecer. Os aparelhos não são apenas arreios. São instrumentos medievais que te impedem de comer nos primeiros dias. A masmorra culinária ao alcance da boca.

Maria Angélica, a dentista, recomendou 20 minutos sem comer. Fui falsamente exemplar. Esperei uma hora para quebrar o lacre com uma batata frita, modelo Elma Chips. Peguei uma do saco da minha filha. Um espécime pequeno, para teste. Em segundos, a dúvida: onde estava a batata?

Não conseguia localizá-la entre dentes, aparelho, céu da boca, língua e outros integrantes que lotavam a boca naquele momento. Tive que abri-la e perguntar à minha filha, na fila do caixa de um supermercado lotado. “Está presa no dente?” “Não, pai, você já engoliu.”

O mico gastronômico veio acompanhado da lição de alguém mais experiente. Minha filha, com três meses de carcaça na boca, é uma veterana, que tentou me acalmar, quando disse que a boca parecia pesada. “Pai, é assim mesmo! Depois, acostuma.”

Ainda acredito, apesar de que este preconceito entrou em mastigação, que aparelhos dentários pertencem às pessoas mais jovens, muitas delas virgens, de fato. Mas tive que aceitá-lo por uma questão de saúde, não estética. Poderia perder os dentes quando envelhecesse por conta de uma enfermidade na gengiva.

Paciência, melhor boca virgem agora do que banguela ou um deserto em alguns anos. Em vez de vida amorosa renovada, me tornaria estrela de cremes para dentaduras ou outros acessórios. Um modelo daquelas fotos antes e depois que povoam os programas da tarde na TV.

A única coisa concreta é que a cadeira de dentista me espera nos próximos dias para a retirada dos quatro dentes do siso. Sempre desconfiei que amor e sofrimento, prazer e dor andavam de braços dados. Aliás, recomendo que os dentistas também recebam contribuição dos conselheiros sexuais e - por que não? – de lojas de sex shop.

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