Um panetone (meio) solidário


Dona Nair pegou licença de 90 dias. Ganhou uma luxação no joelho direito ao ser atingida por um carro – na verdade, uma manobra muito parecida com a da Ana Maria Braga, mas com motorista dentro – na saída do banco. Aos 82 anos, ela acha que, desta vez, terá um descanso merecido. 

— Depois de 30 anos no prédio, ainda tenho que limpar bosta destes ratos com asas. Puta que pariu!

As palavras eram quase idênticas todos os dias, sempre por volta das dez e meia da manhã, quando varria o vão livre entre os dois prédios onde trabalha. Ela jamais esperou solidariedade das pombas, mas aprendeu – nos últimos tempos – a não contar também com alguns roedores bípedes, vestidos de grifes de segunda linha e com carros financiados em vários anos.

Desde que sofreu o acidente, ninguém a telefonou. Dona Nair reclamou como de praxe, mas nada a aborrece tanto como o presente de Natal que recebeu de uma das moradoras. Não consegue se esquecer do pacote. O episódio se transformou em símbolo dos 30 anos de convivência e escravidão remunerada.

Na semana anterior à festa, Dona Nair começou a esbravejar que nunca ganhava nada de presente do condomínio. Nem uma lembrancinha. Um pingente de 30 anos de casa que fosse. Sequer um obrigado por tantos anos de serviço. Quanto mais perto da data, mais alta e frequente era a lamentação. Pombas e Natal eram irmãos de lamúria.

No dia 23 de dezembro, no final da manhã, o interfone da zeladoria tocou. Era a moradora do 36A, que pedia à Dona Nair que subisse ao apartamento. Tinha uma surpresa. Como Dona Nair lavava uma das garagens, pediu meia hora de prazo. A moradora respondeu que sairia para almoçar e deixaria uma encomenda na porta do 36A.

Depois de meia hora, Dona Nair subiu os dois lances de escada, viu a sacola, colocou-a debaixo do braço e retornou para seu banquinho, no térreo. Era hora do almoço, poderia abrir o pacote com calma.

Esquentou a marmita no microondas, comeu com gosto e resolveu ver o conteúdo. Finalmente, alguém ressuscitava o espírito natalino. Desmembrou o papel, abriu o pacote e não entendeu. Encostou a laranja de sobremesa e resolveu ler o bilhete em anexo. “Dona Nair, que este presente simbolize a solidariedade do Natal. Boas Festas!”

Dona Nair olhou para o presente outra vez. O panetone, de uma marca vagabunda, estava pela metade. Comido, partido ao meio, roído, incompleto. Ao ver Marcelo, o outro faxineiro, passando pelo corredor, perguntou:

— Você ganhou algum presente da mulher do 36A?

— Não, a senhora ganhou?

— Nada, nada. Esquece.

Dona Nair jurava que Marcelo seria o dono da outra metade. Foi a primeira explicação. Imaginou que a moradora quisesse agradar os dois e estava em economia de guerra. Teorizou também que algum vizinho pudesse ter roubado 50% do panetone. Até que leu, no saquinho plástico, o nome da marca e entendeu: “a vagabunda ganhou esta merda, experimentou, não gostou e resolveu passar o panetone roído pela metade para mim”.

Dona Nair se levantou, pegou uma caneta na mesinha do quartinho e escreveu no verso do papel. “Dona Laura, obrigado pelo presente, mas não passo fome. Se a senhora comeu a metade, é porque precisa da outra. Bom Natal!”

Esperou até o final da tarde, subiu lentamente os dois lances de escada e deixou a encomenda na porta da moradora do 36A. Saiu de férias e curtiu as festas em casa. Depois, se acidentou. Até hoje, quando olha para o joelho, acredita em praga de reveillon daquela perua meio solidária.

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