Um corintiano em terapia


            
Assim que o jogo terminou, confesso que fiquei paralisado no sofá. Não consegui me levantar e ir à janela gritar contra os vizinhos que torciam pela desgraça alheia. 

Na semana anterior, o vizinho do prédio ao lado virara o inimigo invisível atrás da cortina. Era um santista que se transformara em argentino para se vingar. Ou para mascarar o despeito. Soltava palavrões a cada gol perdido pelo Boca Juniors e comemorara o 1 a 0 argentino.

Logo depois que Romarinho salvou uma nação, me peguei na janela, berrando em direção ao apartamento do prédio ao lado.

— Chupa! Chupa!

É claro que o ritual envolveu distanciamento seguro. Brigar por futebol, jamais. Só deu para testemunhar a cabeça do vizinho se movendo freneticamente, à procura de quem o xingara. Se ele descobriu, também é adepto da recíproca distância.

Ontem à noite, não repeti a dose, apesar de que a sala dele estava vazia. A vizinhança estava quieta. Eu fiquei quieto assim que o jogo acabou. Quase calado, não por consequência de quem mora em volta.

Não sentia vontade de pular, gritar, comemorar com entusiasmo. O alívio me colava no sofá. Mais do que contente, tirei um peso das costas.

A sensação de que o Corinthians venceria o campeonato começou a me preencher – e me incomodar – depois que o Santos foi eliminado. Moro em Santos desde que nasci. Sei o quanto significa uma cidade dividida. Era o principal adversário, não apenas pela rivalidade, mas também pela força e por ter alguém capaz de desmontar qualquer esquema tático eficiente.

Se a psicanálise nos leva à infância para desvendar traumas, então resolvi apanhar o ônibus rumo ao inconsciente. Despachar o Santos me fez voltar a 1987, quando tinha 13 anos. Naquele ano, o Corinthians terminou o primeiro turno do Campeonato Paulista em último lugar. O Santos, em primeiro. O que dizer todos os dias na escola, onde santistas se multiplicavam, com dedos apontados e dentes à mostra?

No segundo turno, o Corinthians terminou na liderança, o que o colocou em quarto lugar no geral. Assim, enfrentaria o líder nas semifinais. Quem? O Santos, de Rodolfo Rodriguez. Naquele tarde de domingo, senti pela primeira o perverso sabor da vingança. Corinthians 5 a 1, com quatro gols de Edmar. A escola, no dia seguinte, parecia um velório. O detalhe de que o Corinthians perdeu para o São Paulo na final, neste caso, é irrelevante.

Tirar o Santos da Libertadores nos traz o sabor de derrubar quem se pautava pela soberba. De ter ganho no ano anterior. De ter Neymar e Ganso. De minimizar a covardia de ser goleado pelo Barcelona. Mas de nada adiantaria se o Corinthians perdesse para o Boca Juniors.

O empate na primeira partida , na Argentina, estilhaçou o mito. Não perdemos em La Bombonera, contrariando a lei das probabilidades. O Corinthians equilibrou a partida em vários momentos. Empatou com o sofrimento tradicional, mas fortaleceu a sensação de que a Libertadores era possível. Bobagem pensar nas estatísticas como invencibilidade, desempenho dos argentinos no Brasil etc.

Nenhum ângulo matemático resolveria a ansiedade de temer pelo pior. Como confiar cegamente em um time que se defende com eficiência, mas ataca com dificuldades? E se o Boca Juniors encontrasse o gol primeiro? Traumas, nervosismo, uma crise de pânico que travaria a virada?

A sensação era ambígua. O temor rivalizava com o prazer de quem enxergava o jogo sob controle. Primeiro tempo de inércia coletiva. Ausência de sobressaltos. Paz de quem sobreviveu com a tensão de que o tempo fora encurtado pela metade. Pênaltis, jamais. Se a partida alcançasse este ponto, definitivamente perderíamos. Seria o castigo mais cruel. O mito de ter o fígado devorado pelo gavião diariamente.

Passei o segundo tempo encolhido no sofá. Curvado para frente. Não conseguia repousar minhas costas, mesmo depois do presente de Schiavi para Emerson. 2 a 0 era pouca diferença. Precisávamos matar o monstro e fechar a tampa do caixão, como disse Casagrande, o comentarista emocionado. Com 2 a 0, o Boca poderia ressuscitar como assassino de filme de terror clichê.

O segundo tempo me levou à sessão de auto-manicure. Todas as unhas estavam cortadas de modo imperfeito, mastigadas por quem tinha a ânsia de devorar o passado pela TV. Peguei-me olhando no cronômetro de dois em dois minutos. Ainda faltavam 15 para terminar. Com um gol, os argentinos poderiam nos encurralar. Cássio é seguro, mas não infalível.

O corpo se encolhera como se sofresse de náuseas. Não havia dor física, apenas um corpo recolhido pelo medo. Eles não poderiam falhar. Cada bola expelida para a arquibancada – ou mesmo para a lateral – assegurava que o jogo estava nas mãos.

Meus filhos, distraídos, jogavam bola pela sala. As crianças sentem primeiro. Mariana, na sabedoria de quase 10 anos, tentou ponderar:

— Pai, acabou! O Corinthians é campeão!

Cinco minutos viraram oito porque o zagueiro Caruzo insistia em querer brigar com Emerson. Nunca acreditei nele como atacante para o Corinthians e temia que devolvesse as provocações. A expulsão contra o Santos reacendia a cada bate-boca em portunhol. Mas é preciso reconhecer: devemos a ele!

O final do jogo me costurou ao tecido do sofá. Olhava para TV, ouvia as entrevistas, o hino, os cantos da torcida. Mal escutava o blábláblá do narrador. A premiação selava a vitória.

Não consegui pular. Quem sofre no deserto sempre desconfia do oásis a sua frente. Fui brincar com meus filhos. Silenciei sobre o que vi. A ferida estava cauterizada.

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