O dote



Casamentos sempre envolvem dotes. Entre camponeses, podia ser um saco de grãos, um porco ou uma galinha. Entre nobres, pedaço de terra, título ou reinado. Hoje, entre os ricos, o dote pode ser uma fazenda, um carro importado ou sociedade numa empresa. Entre os pobres, a compra de eletrodomésticos ou um quarto na casa da sogra.

A política também funciona por casamentos. Eles chamam de alianças, talvez para não se lembrar de que há prazo de validade eleitoral e de que divórcios são parte natural do acordo. Ao menos, a política é mais pragmática quando evita se afogar na ilusão do “felizes para sempre”.

Houve muito escândalo e furor de moralidade nos dias que antecederam o início “oficial” da campanha eleitoral. Muitos ficaram horrorizados com fotos emblemáticas de figurões, com trocas de cargos e, principalmente, com os casamentos firmados pelo tempo de exposição no horário eleitoral gratuito no rádio e na TV.

O carnaval, por um lado, expõe a classe política a mais um vexame dentro da construção de imagem de contos de fada. No outro extremo, ratificar o tempo na TV como dote para subir ao altar – algumas vezes, em casamento comunitário – apenas confirma o cinismo que move parte do eleitorado, seja omissão, seja pela falsa ignorância.

A política, desde a Antiguidade, é permeada por namoros, noivados, abandonos no altar, casamentos bem sucedidos, traições, divórcios, viuvez e outros tipos de relacionamentos teoricamente afetivos. Por que hoje seria diferente? Em um país com 30 partidos, ainda é possível acreditar em ideologias puras? Nem os olhares extremistas escapam das tentações quando ascendem ao poder.

Por que nos assustamos com a foto de Lula e Maluf? Aliás, esqueçam Fernando Haddad. Ele está ali por acaso, como um papagaio do cenário. A memória curta e a desinformação fizeram parecer que os dois personagens provocaram reações como se a plateia estivesse diante do novo.

Todos sabemos que Maluf representa, no imaginário, aquele sujeito mulherengo com quem jamais uma moça “direita” se casará. Namorará por uns tempos, mas não poderá apresentá-la aos pais. Ele tem má fama na vizinhança, mas possui status, mesmo que a família esteja decadente.

É claro que, quem vive de status, sabe o quanto vale uma imagem. Lula caiu na armadilha e posou com Maluf. Qual é a novidade entre os vários casamentos feitos pelo PT e seu imperador? O que Michel Temer e o PMDB significam para a história recente da política nacional?

O PSDB ameaçou espernear, mas foram poucas as vozes que gritaram, até porque o partido também tentava passar uma conversa no cacique do PP. E há relacionamentos antigos entre os dois. Maluf apoiou Covas e Fernando Henrique Cardoso em eleições distintas. Em ambos os casos, existe material fotográfico de Maluf levantando o braço dos dois, “rumo à vitória”, como prega o clichê de campanha.

Além do choque da ilusão, muitos correram para eleger Luiza Erundina a heroína que recusou um dote para se manter intacta, como uma princesa que prefere se manter enclausurada na torre de marfim.  A política tem inúmeras nuances que derrubam, no primeiro round, quaisquer tentativas de entendê-la como um filme de Hollywood, no qual mocinhos e vilões são claramente delineados e se comportam com coerência linear até o desfecho da trama.

Erundina, para confundir, misturou princípios com imagem quando declinou do convite de ser candidata à vice-prefeita. Talvez ela tenha sentido constrangimento com a foto famosa, mas se referiu várias vezes a prejuízos da imagem, uma construção artificial.

Neste discurso de paladina, Erundina afirmou seguir o partido, que apoia com veemência a aliança. Fidelidade partidária soa como muleta diante do balaio de vira-casacas que marca a estrutura política brasileira. Alianças são casuais, por conta de dividendos comezinhos; jamais ocorrem por rigidez ideológica. A própria Erundina, por exemplo, teve que digerir Orestes Quércia em outras folias.

A eleição de 2012 não será diferente das demais. Cargos estão à venda, espaços políticos dentro do governo seguem sob barganha contínua. Talvez a mudança esteja no nível da desfaçatez, que conta – inevitavelmente – com a expressão de surpresa de quem, no fundo, opera do mesmo jeito no cotidiano e confirma o estilo de vida a cada dois anos nos botões da urna eletrônica.  

Comentários

Wilson Ohoseki disse…
Eu defendo a tese de que a limpeza começa no nosso próprio quintal para, sómente depois, se irradiar no entorno. Enquanto continuarmos a endossar o "Ah, se eu entro nessa boquinha!" e praticarmos o mais valia nas nossas relações, não haverá luz no fim do túnel.