O purgatório das sereias



A extinção do futebol feminino no Santos Futebol Clube não apenas expõe os pés de barro de um gigante propagandeado como sólido e transparente, como também ressuscita o debate sobre os espasmos que envolvem a organização deste esporte no país. Os sinais haviam sido dados pela diretoria do clube ao longo do ano passado. O Santos esvaziou gradativamente o departamento e utilizou a justificativa de falta de retorno financeiro para passar o cadeado.

Como um clube deste porte não consegue arranjar financiadores para o futebol feminino, ao mesmo tempo que ostenta contratos vultuosos na equipe profissional masculina? A diretoria não recebe apoio de uma confraria de executivos dignos de Banco Central? Como este grupo não vislumbrou novos caminhos para tornar o Santos efetivamente uma exceção? É óbvio que são times diferentes, em contextos distintos, mas me incomoda imaginar por que não se pensou em alternativas para a equipe feminina, da forma como se trabalha com os atletas.

A agonia do futebol feminino do Santos começou há meses. Os sintomas, diante do cadáver recém falecido, podem ser enumerados por qualquer legista. A saída do também técnico da seleção brasileira, Kleiton Lima. O enfraquecimento do elenco, com o final do contrato de diversas estrelas. O afastamento dos dirigentes e a desvalorização da Libertadores em 2011. Os resultados insuficientes contra equipes de menor visibilidade. São fatores que, separados, pareciam pontuais, mas acenavam com a mudança de rota rumo à extinção.

O futebol feminino continua sendo visto como um apêndice do masculino no Brasil. O mesmo argumento de que era fundamental fortalecer a cultura do futebol entre mulheres no país agora serve para justificar um possível fracasso da modalidade. Entre todos os níveis, do Santos à CBF, salvo exceções como a Copa Libertadores do ano retrasado, a cartolagem pratica a cortina de fumaça para mascarar projetos de curto prazo, com o verniz de que o futebol terá tempo para se desenvolver por aqui.

Marta, por exemplo, nunca veio com contratos de longa duração. Jogava nos intervalos dos campeonatos europeus ou norte-americanos. Outras atletas de seleção brasileira, como a atacante Cristiane, atuavam nos mesmos moldes contratuais. De fato, nunca se pensou em programas duradouros, o que não surpreende porque o futebol masculino, entre os grandes clubes, também passa por renovações a cada aceno de qualquer time de segunda linha da Europa.

Os dirigentes poderiam tentar entender como o futebol feminino é um sucesso em países europeus e nos Estados Unidos. Há inúmeras portas a escolher. Campeonatos sólidos, com administração independente, como na Suécia e na Alemanha. Ou vincular a modalidade à formação universitária e à criação de uma liga rigorosamente profissional, como nos Estados Unidos, sem vínculos clubísticos, definitivamente empresariais. Ou ainda adotar o modelo chinês, subvencionado e controlado pelo Estado. Todos eles geraram resultados em competições internacionais.

O futebol feminino rasteja desde os anos 80, de pires na mão para as migalhas da Confederação Brasileira de Futebol. Desde o tempo da equipe carioca do Radar, não há uma política sólida para este esporte. O futebol feminino transita pelo purgatório, numa espera torturante, já que os times não seguem os passos da versão masculina tampouco são livres para desenvolver vida própria. A sombra que protege é a mesma que machuca quando o interesse dos cifrões desaparece.

O Santos é mais um caso isolado que eleva a pilha da ilusão que assassina inúmeras vezes a esperança de um novo recomeço. Todos os times grandes de São Paulo montaram equipes femininas e fracassaram. Os clubes não pressionam as federações. A imprensa não se interessa, viciada no dia-a-dia dos times, com contusões, suspensões e outras regras da cartilha viciada. As estratégias de marketing reiteram o caráter passageiro e específico.

Terminar com o futebol feminino, assim como aconteceu com o futsal, arranhou a imagem de pujança. A gestão que tenta transformar a exceção Neymar em regra, sob a alegação de que mudaria o estado de coisas, provou ser mais do mesmo. O Santos, que simbolizava novos tempos, se mostrou co-irmão dos colegas paulistanos. As diferenças entre eles se foram com o reveillon, ao menos nas modalidades que cercam o futebol masculino.

As sereias da Vila, que engordaram a sala de troféus com duas Libertadores, um Mundial e três campeonatos Paulistas, morrem lesadas pelo canto que normalmente seduz os homens. Eles, por sua vez, serão lembrados pelos naufrágios que provocaram no ano do centenário que, em teoria, deveria passar em brancas nuvens e mares ausentes de tempestade.
 

Comentários

edu vieira disse…
muito triste...com tanto dinheiro gasto com os reizinhos da vila, jogadoras super competentes são despejadas. Assim que querem alimentar esse discurso que a garra, a raça é mais importante que o dinheiro? osbrasileiros pararam no a taça do mundo é nossa..