Os dedos tortos


Goleiros são como boxeadores. Precisam ter mãos grandes para sobreviver na profissão. E dedos tortos para marcar o tempo de estrada. Goleiros com unhas feitas e dedos simétricos indicam falso testemunho no ofício. São enganadores, assim como as bailarinas de pés de fada. 

Os goleiros colecionam luxações, rachaduras nos ossos, dores contínuas; são deformações que indicam quantos prazeres – chutes interceptados? - foram estragados no cotidiano do futebol. É a trajetória de dedicação do escravo das dores suportáveis, armado de esparadrapos e ataduras para persistir como o sujeito que brocha a existência do gol.

O castigo nasce nos detalhes. Os dedos entortam, normalmente, em defesas fáceis. As mãos traem quando a segurança domina a bola. Luvas se tornam instrumentos inúteis quando o goleiro está destinado à dor, como se não bastassem sucessivas decepções a cada balançar das redes.

Julio César, do Corinthians, caiu com tranqüilidade para defender um chute de longa distância do atleta do Botafogo. A defesa foi sem rebote, com reposição de bola serena, daquelas em que o zagueiro vira as costas aliviado. Mas o dedo mindinho do goleiro estava torto. Com a transmissão ao vivo pela TV, a vitimização se transformou em heroísmo.

Ao colocar o dedo de Julio César no lugar, o médico do Corinthians alterou a história do goleiro no clube. Julio é o herói do momento. Sempre será lembrado pela façanha de jogar com o dedo arrebentado. A prova de amor para um time destinado a vencer quando as críticas se multiplicam, quando o suor jorra além do normal da pele de jogadores medianos esforçados.

O Corinthians vencia por 1 a 0, a sétima vitória seguida, a nona em dez partidas. O técnico Tite já havia feito as três substituições. Jogo fora de casa, adversário impondo pressão pelo empate. O cenário era delicado e, por isso, favorável a atos de sacrifício. Julio César percebeu que aqueles cinco minutos a mais, com o dedo latejando, poderiam tatuá-lo como corintiano.

A conjunção de fatores mudou a relação de Julio César com a torcida. Uma bola cruzada na área. O goleiro afasta com a mão direita, até porque a outra apenas fazia figuração. Dois minutos depois, em um contra-ataque, Paulinho faz o segundo gol, que sacramenta o resultado no Rio de Janeiro.

Julio César esperou por cinco anos para assumir a camisa 1 do clube. Nunca foi unanimidade. Falhou em momentos importantes, destino dos goleiros bons, porém comuns. A direção do clube não confia nele, tanto que contratou Renan, revelação do Avaí, de Santa Catarina.

Julio César chegou a perder a posição para Rafael Santos, que falhou em excesso e deixou a equipe. Desde a saída de Dida, o Corinthians jamais teve um goleiro à altura das tradições e responsabilidades do cargo.

Julio César, formado e amaldiçoado em casa, teria o destino de outros que amargaram a transição entre dinastias de goleiros excepcionais. Agora, com o dedo torto de um boxeador, ele sairá das notas de rodapé para ocupar o posto de personagem principal de um episódio da história corintiana.

O goleiro terá a vantagem das lembranças dúbias. Ele poderá ser lembrado como o vilão que errou numa partida decisiva de Campeonato Paulista, contra o Santos, na Vila Belmiro. Mas os que transpiram amor cego vão se recordar do goleiro que deslocou o dedo mindinho da mão esquerda, recolocou-o no lugar e agüentou em campo contra o Botafogo, em pleno Rio de Janeiro.

Goleiros honestos, não exatamente gênios, vivem assim. Com mãos tortas, preferem vias sinuosas para escrever – sem garantias de compreensão – a própria biografia, dolorosa como o dedo arrebentado por um chute sem pretensão na quarta-feira à noite.  


Comentários

Gustavo Hofman disse…
Muito bom, parabéns.
Beth Soares disse…
Impressionante como você faz brotar poesia, mesmo nos assuntos mais improváveis.
Adorei! Como sempre.
Beijo.
Wanny Oliveira disse…
Parabens Maros Vinicios. Seu texto é genial. Eu não sabia desta marca existente nos dedos dos goleiros.
Muito bom.
Beijos