Para os coiotes, uma bala de festim

Políticos costumam se comportar como os coiotes, com o perdão da generalização. Mantém-se em silêncio à espera da oportunidade perfeita para abocanhar sua presa. Jamais entram em conflito. Pegam os restos da vítima, já abatida por outros predadores.

A campanha do desarmamento e a ideia de um novo plebiscito sobre a venda de armas indicam como a classe política adora ser oportunista. Os parlamentares, em Brasília, pouco se interessam por segurança pública, exceto na hora de fatiar orçamento para fazer média com os currais eleitorais.

O massacre em Realengo representou, neste caso, apenas uma justificativa torta para que deputados e senadores se aproveitassem da dor alheia e praticassem um discurso vazio, descontextualizado, enquanto disparam – com consciência - no alvo errado pelas razões equivocadas.

O assassinato das crianças cariocas não tem relação alguma com o problema da venda de armas no Brasil, ao menos na proposta da campanha. Mas é um prato suculento para quem pretende desviar a atenção de responsabilidades espinhosas, como a reforma política, e retorcer a exceção como se fosse regra geral.

A campanha do desarmamento raspa na superfície a questão das armas no Brasil. Na última campanha, mais de 220 mil armas foram entregues pelos cidadãos comuns. Houve redução de homicídios? Somente em curto prazo. Sem outros passos, o patamar anterior é novamente retomado. E desarmar a população não explica, de maneira completa, a violência urbana.

A campanha do desarmamento evita, teoricamente, que o sujeito comum cometa crimes pelos quais se arrependerá por muito tempo. A briga de trânsito, a desavença no bar, o dia ruim no trabalho, o entrevero com a mulher. Uma arma nas mãos e a cabeça quente resultam numa combinação explosiva, que destrói vidas, da vítima, do agressor e de familiares.

O problema é que a campanha, isoladamente, é tão estéril quanto se não existisse. Parte das armas volta ao mercado clandestino pelo crime organizado. Outra parte entra, com anuência de muitos agentes do Estado, pelas fronteiras repletas de buracos de vigilância. E o próprio cidadão comum pode adquirir, com os relacionamentos certos, armas de pequeno porte para se defender dos mesmos incidentes cotidianos, no trânsito, no bar ou em casa. Às vezes, com o apoio de quem deveria impedir a transação.

A fiscalização é tão frágil quanto as armas dos policiais que combatem a criminalidade nas cidades brasileiras. O jornal O Estado de São Paulo procurou dez escolas de tiro para verificar as condições prévias para aceitação de alunos. Do total, sete escolas registravam matrículas de menores de idade e não checavam antecedentes criminais.

A soma dos obstáculos reforça a velha mania da classe política de, num tiro só, fugir do debate social profundo e ganhar com a cortina de fumaça. O massacre em Realengo nada tem a ver, diretamente, com segurança nas escolas ou com o comércio de armamentos.

A discussão seria mais proveitosa se os deputados e senadores cobrassem do Poder Executivo políticas duradouras de saúde mental, com os recursos financeiros adequados. Talvez, deste modo, um sujeito diagnosticado com esquizofrenia tivesse o acompanhamento correto e constante, que reduziria as chances de um surto violento concluído com sangue. 

A campanha do desarmamento e a repetição de um plebiscito sobre a proibição do comércio de armas são como balas de festim no campo de batalha. Simulam uma situação, fazem barulho, mas não ferem ninguém. Inúteis, não fazem cócegas nas partes diretamente interessadas – que lucram – com o negócio no país.

As balas de festim recebem, como brinde, a conivência dos coiotes, que esperam com paciência pelo apodrecimento da carniça no meio do deserto. Depois, eles a devoram, lambem os beiços e a fazem desaparecer do horizonte da agenda pública.

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