O abacateiro

Ninguém sabe como a árvore foi parar ali. Os mais velhos desconhecem quando foi plantada ou quem trouxe as sementes. Um garantiu: o abacateiro sempre esteve naquela calçada da avenida Pedro Lessa, em Santos. Outro, mais sarrudo, decretou: o pé está ali desde que se conhece por gente.

O abacateiro é o único da espécie entre o canal 6 e a avenida Portuária, na Ponta da Praia. A única árvore frutífera, na borda do caldeirão de fumaça e barulho, a poluição de caminhões e espigões de concreto. A única árvore que interferiu nas férias de verão. O abacateiro é a segunda casa das crianças que brincam todas as tardes às margens do corredor comercial.

Confesso que minha opinião sobre o abacateiro mudou por estes dias. Antes, era um incômodo. Ele que me obrigava a ir para rua para não esbarrar o guarda-chuva em seus braços. Parte da folhagem batia na cabeça de meus filhos quando os carregava no colo. Os buracos provocados pelas raízes na calçada completavam o pacote da chateação.

Abandonei meu egoísmo ao testemunhar as crianças em volta dele. E vi como o abacateiro é um erro de geografia e de história. Árvores frutíferas – teimosas por dar frutos em tempos transgênicos – não deveriam existir mais ali. Crianças brincando em árvores nas barb
as do cais também não. 

Ainda bem que, às vezes, árvores são surdas e ignoram as leis humanas. O abacateiro testemunhou o nascimento do canteiro que divide a pista, a troca dos chalés portugueses por edifícios de três andares e depois por casas sobrepostas, a chegada de terminais portuários e dos estacionamentos para caminhões que afogam as ruas do bairro.

A árvore cumpria seu destino de anonimato. Adultos não a enxergavam. Crianças a revivem quando encontram nela uma porta para a fantasia, para as brincadeiras que tornam pés e mãos encardidos no final do dia.

Sem querer, o abacateiro conduziu meninos e meninas, de 4 a 11 anos, a um universo que talvez não conhecessem ao vivo. Estas crianças se esqueceram de seus videogames e outras parafernálias eletrônicas. A nova rotina as coloca, no mínimo, a dois metros do chão. Voam e ressuscitam outros brinquedos como pipas. Só faltaram os peões e as bolinhas de gude para que o cenário se encaixasse numa refilmagem de 25, 30 anos atrás.

Para as crianças, o abacateiro é o acampamento de férias, canal para liberdade provisória. Para mim, era a carta de alforria da escravidão domiciliar, onde brincar é tão artificial quanto os desenhos consumidos aos montes na TV.

De surda, a árvore passou a falar pelos cotovelos. Quando se passa embaixo dela, ouve-se uma sinfonia de vozes agudas, masculinas e femininas. Vozes que nascem nos galhos, que me obrigam a olhar para cima e observar a copa, que poderia incomodar o vizinho da casa em frente. Vozes que injetam nele uma dose de misericórdia e adiam o pedido de poda à Prefeitura.

O abacateiro deixou a vida obscura. De um tronco a mais, virou abrigo para aquelas crianças, que despertaram nos avós a saudade da própria infância. E os pouparam de contar histórias cada vez mais abstratas e distantes do universo dos novos moradores da árvore.

Os inquilinos preferem viver a experiência do que servir de depósito para um passado que mal compreendem. Nem é preciso perguntar. O sorriso e a recusa em voltar para casa denunciam a mudança de vida. Nem a comida preferida de mãe altera o ritmo de trabalho. Nem a
ameaça de castigo para o dia seguinte interfere na imaginação daquela comunidade.

Com a retomada das aulas, imaginei que o abacateiro recuperaria a paz e o silêncio. De maneira involuntária, voltaria a ser visto como o conjunto de galhos que obriga os pedestres a abaixar a cabeça.

Para os mais antigos, a árvore teria data de validade por causa da aproximação da floresta de concreto. Mas sujeitos com mais de 1,40 metros não apitam nas regras do abacateiro, que – aliás – foi promovido. Com a volta às aulas, ele seria apenas a casa de final de semana. Previsão de adultos de criatividade limitada. Para as crianças, a árvore agora é atividade extra-curricular, uma espécie de lição de casa depois que chegam da escola.

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