A morena do Alceu

A morena não sai da minha cabeça. Seis dias pensando em como ela é sedutora, perfeita para amenizar o calor tropical, saborosa como a pele macia. Surpreendo-me com a imagem dela várias vezes ao dia.

A morena aparece no meio de uma reunião de trabalho, durante o almoço, antes de dormir. Ela teima em se materializar até quando estou com minha mulher, para quem tive que confessar a obsessão. 

Faz seis dias que a música “Morena Tropicana”, de Alceu Valença, grudou em meu cérebro. Vasculhei a memória e não descobri o motivo da neurose. Não reencontro Alceu Valença há anos, seja na TV, em matéria de jornal e revista. Nem nas rádios FM de minha preferência escutei qualquer sucesso dele nos últimos tempos.

Conversei com amigos sobre a música e sobre Alceu. Ninguém a ouve há tempos. Ele também não pingou no noticiário ou recebeu homenagens por premiação, aniversário ou morte.

Não consigo largar a morena. Tentei outras músicas, de outros artistas. Nada. Ela sempre retorna, a partir do refrão. Busquei outros ritmos, em outros idiomas. A morena fincou o pé, pois me pego cantando outros trechos da letra.

É “caldo de cana caiana, vem me desfrutar” de manhã, antes do café. Às vezes, “saliva doce, doce mel, mel de uruçu” na frente do chefe, que continua a discutir o cronograma de trabalho do semestre. Pronuncio palavras que desconheço o significado. Resgato frutas que nunca vi. Saboreio iguarias que mal sei se são salgadas ou doces. Todas me remetem à morena do Alceu.

Como um encosto, pensei em exorcizá-la. Recuei nesta bobagem quando me dei conta de que ela é bonita e tentadora demais para ser expulsa com violência. Um pecado tão inofensivo como ela não merece texto em latim, padre e água benta. Cantá-la em português, com água de coco na beira da praia, me soa bem mais tropicano.

O fato é que a morena está no lugar errado. Só é coerente com clima escaldante que nos cozinha todos os dias. Mas música-chiclete, que penetra e sobrevive tempos no cérebro, não escolhe data, endereço e caixa de som, real ou virtual.
           
Música-chiclete é normalmente música ruim. As letras e melodias fazem sacanagens com a vítima. Quanto mais o sujeito odeia a música, mais tempo de vida terá dentro da caixa craniana. Se puder causar danos neurológicos, a missão será considerada bem-sucedida.

Como não é possível medir os estragos, a música-chiclete se contenta com a humilhação pública.

— Você, fulano, quem diria, cantando o novo sucesso daquela banda colorida? Como sabe a letra? Sabia que não me enganava com esta camisa preta e com os cabelos compridos. Teu negócio nunca foi rock pesado. Pelo menos, ficou com a guitarra e seus poucos acordes.

Estou livre deste problema. “Morena Tropicana”, além de boa música, é bem aceita socialmente. Até entre os jovens, pois suponho que haveria apenas a estranheza de quem nunca ouvi falar de Alceu Valença.

Suponho porque consigo me conter. Não me meto a cantarolar a melodia, depois da letra incompleta seguida de hum, hum. Quem não me conhece, não nota que fui enfeitiçado. Segundo um amigo, o único sinal é a cara de paisagem morta, mascarada com a ideia de que me perdi em meus pensamentos.

— Deve ser preocupação com o trabalho ou com os filhos, coitado!

A obsessão pela morena não me levará ao hospital ou a freqüentar o divã. Talvez a morena seja algum sinal simbólico, um recado do inconsciente. Prefiro não descobrir, até porque construí uma imagem deliciosa da moça, indescritível neste instante de egoísmo.

Como sintoma de minha escravidão, mudo a imagem várias vezes para realimentar a paranóia por ela. Dá sempre um novo sabor para a mesma fruta. Prazerosa como paixão recente. Um sentimento de submissão, de servidão até, já que a morena não pediu licença para entrar, demarcou território e insistiu em perpetuar seu domínio autoritário. Mas admito que adoro a presença dela, independentemente do comportamento. No fundo, é boa moça. Moça boa? Ou ambas?  

O lado B deste relacionamento é a consciência de que há um prazo de validade. A morena tropicana morrerá em breve. Será trocada por outra; espero que alguém como Carolina, por exemplo, de Seu Jorge.

Não saber me mata. A música substituta pode ser incompreensível. Uma música instrumental, talvez? Uma melodia na qual não consigo me lembrar da letra? Ou uma peça arqueológica de minha infância, artefato brega que escapou do sarcófago musical?

E se for o hino do maior rival, que ressuscita no meio da transmissão do meu clube de coração, ao lado dos amigos e da cerveja? Ou a música que marcou a história com aquela ex-namorada, que salta aos lábios justamente quando estou ao lado da mulher atual, que detesta todas as ex e todas as ex-músicas?

Com ou sem sofrimento, a morena tropicana sairá da minha vida. Mas duvido que se transforme em passado distante, caminho natural daqueles que perdemos e sepultamos em rituais. Não haverá luto. Fiz uma promessa a ela. Prometi que, mesmo que se dilua em meus neurônios, a morena seria eternizada em palavras. Como feiticeiro, minha mandinga fez com que ela deixasse de ser letra musical para se transformar em crônica.

Obs.: O texto foi publicado, originalmente, no site Jornalirismo.

Comentários

Cahe´s blog disse…
Meu caro,
Aqui não adianta brigar. Quando elas entram, ficam mesmo.
Exemplo? Enquanto você está com a Morena do Alceu, eu estou com a Mulata da Globo.
Pode adivinhar quantas vezes minha mulher me pegou cantarolando "e lá vou eeu, lá vou eu" e quantas vezes ela me deu uma bronca?

Quem sabe a biomusicologia pode explicar tal invasão e domínio neuronial?

Abraço
Cahe is a Blogger