O coelho que salvou os falsários

A Comissão de Inquérito foi instaurada há duas semanas. Há laudos periciais, testemunhos e observações que servem para construir a teoria que mobilizou as três investigadoras neste final de ano. Resolveram até abrir mão do início das férias coletivas para desmascarar a farsa.

A desconfiança sobre o estelionato nasceu há quase um ano, exatamente no dia 24 de dezembro, a quase duas horas da ceia de Natal. Ali, diante de um velhinho vestido de vermelho e barba branca, nasceu a dúvida: Papai Noel existe?

Você, leitor, talvez tenha perdido uma das mais importantes ilusões que compõem a infância. Talvez dê pouca importância para este problema. Mas para uma criança de 8 anos, como Mariana, minha filha, é provavelmente uma pergunta fundamental, uma fronteira entre duas etapas da vida dela.

Sem filosofia de botequim, mas com curiosidade, ela iniciou um processo de investigação, ao lado de duas primas: Letícia, de 9 anos, e Laura, de seis. As três resolveram se reunir na casa de bonecas para juntar as peças, colar os cacos de uma dúvida que as perseguiu em 2010.

Para se protegerem, expulsaram o pai delas, meu primo Orlando Carlos, que pretendia filmar o encontro. Ele desconhecia dois pontos fundamentais: 1) a reunião do “clubinho” era uma investigação; 2) as três haviam expulsado o principal suspeito.

As investigadoras estão determinadas a provar que Papai Noel não existe. Sentem-se lesadas, vítimas de um crime que durou uma vida inteira, ainda que curta. Antes de ouvir testemunhas, reuniram as evidências.

A primeira é que, embora falasse pouco durante a troca de presentes, Papai Noel tinha os óculos idênticos aos do pai de Letícia e Laura. A voz do velhinho também se parecia com a de Orlando Carlos, agora réu. Outra pista: Papai Noel subiu para o primeiro andar do sobrado e foi embora, mas a casa não possui chaminé. Como ele teria saído?

O velhinho também foi visto trocando de roupa pela fresta da porta. Se ele teria que visitar outras casas, por que mudou de roupa? Ainda bem que não tiveram a presença de espírito de minha irmã que, quando tinha mais ou menos a mesma idade delas, deixou de acreditar em Papai Noel ao encontrar a roupa e o gorro atrás da porta do banheiro.

Apesar de relutantes, as três crianças-investigadoras juram não se lembrar do acusado na sala durante a troca de presentes. E não as convence o suspeito exibir filmes natalinos e assisti-los com as crianças para provar que não se vestiu de vermelho naquela noite.

O segundo passo foi a coleta de depoimentos. Mães, avós, pais, tias e parentes próximos foram questionados várias vezes. Só faltou a sala com o espelho falso e a lâmpada forte no rosto da testemunha. As crianças sempre voltavam às mesmas perguntas, em diferentes contextos. Sempre o mesmo ponto de partida: Papai Noel existe?

As negativas mal convenceram. Por que os adultos não escrevem cartas para ele? Por que as etiquetas dos pacotes estão identificadas com a letra parecida com a da vovó? Por que as embalagens têm a mesma cor?

A sequência de dúvidas abriu margem para outros suspeitos. Nem armar a árvore de Natal desviou o rumo das investigações.

Mariana, por exemplo, passou a desconfiar também da Fada do Dente. Lembrou-se do último dente que caiu, não aquele engolido por ela junto o macarrão e jamais visto novamente. Era o dente dos R$ 6, a oferta inflacionada da fada.

Mariana não duvidou da generosidade. Prestou atenção no fato de que, por acaso, a mesma quantia havia desaparecido do criado-mudo da avó. No mesmo dia! A Fada do Dente ganhou posto na quadrilha do velhinho de vermelho. Mas o benefício da dúvida prevalece em favor do réu. A incerteza garantiu até agora a sobrevida desta etapa da infância.

Na quadrilha da fantasia, um integrante foi poupado: o Coelhinho da Páscoa. Todos os anos, pegadas são marcadas com as mãos em vários pontos da casa. A trilha leva aos ovos escondidos. Neste ponto, a investigadora-minha-filha falhou como perita criminal. Para ela, a reprodução das pegadas é impossível. O laboratório dela não percebeu as marcas de talco, que somem ao simples sopro da própria detetive.

O crime perfeito do coelho virou exemplo para salvar os demais acusados. Como um pode existir e os demais não? É a estratégia de defesa dos adultos. Discurso combinado!

Soube que Papai Noel não existia quando tinha a mesma idade que ela. Soube na noite de Natal por um amigo de colégio, o Ricardo, que passou a ceia na minha casa.
Lembro-me exatamente de onde estava. Lembro-me da insistência dele diante de minha decepção. A criança que se sente tola diante do sorriso da outra. Lembro-me de que, por alguns minutos, a festa perdera o sentido.

A dúvida persistiu na manhã seguinte, enquanto abria o presente deixado por Papai Noel na madrugada. A chegada dele virou ritual; em alguns anos, obrigação. A imaginação morreu em duas frases de um moleque da minha idade.

Anos depois, descobri que o velho de vermelho era uma criação da maior marca de refrigerantes do mundo, como publicidade. Pouca diferença fez, até porque as pessoas perpetuam a ilusão (com todo o direito) quando compram a bebida para ter ursinhos polares de brinde ou instalam pinheiros na sala de casa, mesmo com o calor do Saara.

A investigação será concluída na noite do dia 24. Quando as três investigadoras apresentarem o inquérito cheio de teses, restarão dois caminhos para o velhinho e para a fada. O primeiro envolve o papel de pai. Tenho que manter a história do Papai Noel e dos demais amigos da fantasia até que minha filha descubra por si mesma. É parte da infância dela. É parte da imaginação que sustenta a realidade. É parte do sonho que realimenta a felicidade, expelida pelos olhos frenéticos de uma criança.

O outro caminho não depende de mim. Imploro ao meu primo que volte à cena do crime na noite de Natal, menos vestido a caráter. E que nem pense em se fantasiar de Coelho da Páscoa, em qualquer época do ano.

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