Tio, posso tomar conta?

Faltava uma hora para o reveillon. Milhares de pessoas em busca de um lugar confortável na areia, ao lado de seus parentes, amigos e amores. Muitos chegam de carro e mapeiam as ruas por uma vaga a algumas quadras da orla. Uma professora, ao lado de amigos, procurava por uma vaga no Gonzaga, em Santos. Viu o estacionamento de uma clínica de estética. Obviamente, o estabelecimento estava fechado. Ela achou que valia deixar o carro ali por uma ou duas horas, sem ser multada.

Ao desligar o carro, percebeu duas coisas: 1) as outras duas vagas do estacionamento também foram ocupadas, quase ao mesmo tempo. Outros optaram por risco idêntico; 2) um guardador de carro se mantinha de plantão na calçada.

Ao descer do veículo, ouviu: posso tomar conta? Deixa R$ 20, tia, que tá tudo certo! Diante da negativa de pagar pela “terceirização” da vaga privada, ouviu a segunda oferta: R$ 10. A metade do preço dobrou o grau de ofensa. Ela afirmou que não pagaria nada.

Como o movimento de veículos era enorme na região da rua Marechal Deodoro, o guardador teve que atender os “novos clientes” e se esqueceu da discussão com a “freguesia que pede fiado”. A professora estava mais preocupada em deixar os problemas de 2009 nas águas do mar ou na faixa de areia e decidiu correr o risco.

A cena é parte do ritual de qualquer evento de ordem política e cultural. Ou apenas um lugar movimentado no cotidiano da cidade. O guardador de carro é mais um elemento na paisagem urbana, disposto a fazer dinheiro rápido, uns trocados em certos casos, sem ser incomodado. Ou apostando no medo dos motoristas diante de um futuro incerto.

A Delegacia Seccional de Santos anunciou, na semana passada, a criação um cadastro para os flanelinhas da cidade. O cadastro inclui dados pessoais, fotografias, antecedentes criminais e área de atuação do guardador.
Cada distrito policial tem 15 dias para preparar o cadastro.

A Polícia Civil justificou a medida como forma de identificação dos flanelinhas que poderiam extorquir os motoristas. No entanto, a própria policia diz que o fato de pedir para tomar conta de veiculo não caracteriza crime. Mas a prática abusiva sim, sem definir exatamente o termo.

A recomendação é que, se houver prática abusiva, a vítima deve comparecer a um distrito policial, com duas testemunhas, e efetuar o boletim de ocorrência para abertura de investigação. Dentro da proposta, o cadastro deverá renovado a cada 60 dias. Uma curiosidade: o flanelinha poderá se cadastrar de maneira voluntária nos distritos.

O Poder Público mantém a característica de tomar medidas paliativas, sem efeitos práticos, que nascem para ser enterradas em qualquer gaveta ou virarem motivos de brincadeiras nas rodas de conversa. Assim, enterra-se também a chance de ações mais sérias, em conjunto com outras instituições, para amenizar ou interferir em um problema de ordem social.

Você, leitor, conhece alguém que considere “guardador de carro” ou “flanelinha” uma profissão? Você conhece alguém que tem o desejo de seguir ou se aperfeiçoar nesta “carreira”? É evidente que nenhuma pessoa guarda carros porque se trata de um sonho pessoal. É uma necessidade urgente, fruto de desigualdades sociais, econômicas e financeiras. Um bico para quem está ausente da economia formal, disposto a qualquer trabalho para ter condições mínimas de vida.

Para que serviria um cadastro? Parece um instrumento para regulamentar uma atividade que cheira à ilegalidade. Além disso, qual guardador entrará numa delegacia para se cadastrar?
Olha, delegado, sei que este cadastro serve para identificar os que extorquem dinheiro de motoristas. Por isso, quero meu nome nesta lista.

Muitos guardadores são menores de idade. E muitos são crianças. Basta ir ao cemitério do Paquetá, por exemplo, para uma enterro, estacionar o carro e se ver cercado de meninos, em sua maioria, na faixa de 10, 12 anos. Todos moram nas redondezas, a região mais pobre de Santos. O cadastro vai incluir as crianças? Regulamentar o trabalho infantil?

O cadastro envolve área de atuação. Seria oficializar um mercado de trabalho? Lotear os espaços para este tipo de trabalho? Os guardadores se reúnem por causa de eventos específicos, e não com expediente determinado. E os que ficam nos semáforos? Teriam o ponto definido? Seriam free-lancers? Jornada de trabalho?

Lidar com flanelinhas é caso antigo. Na década de 90, os flanelinhas eram muitas vezes presos por vadiagem. Como poderiam ser soltos rapidamente e ainda havia uma burocracia enorme (papelada mesmo!) para cumprir com a detenção, o melhor era ignorá-los. Com o tempo, a ideia de enquadrar guardadores de carro pelo crime de vadiagem saiu de cena.

O cadastro de flanelinhas é mais uma proposta inócua. Não terá ressonância entre os policiais e tampouco credibilidade por parte da sociedade civil. O tempo (para não falar as pessoas) vai se encarregar de sepultar mais essa peça burocrática.

A história do cadastro para guardadores me faz lembrar da lei que proíbe a presença de vendedores autônomos de carros (os catarinas) nas ruas da cidade. A fiscalização fica por conta da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). Basta dirigir pela avenida Francisco Glicério e imediações do Orquidário Municipal e perceber que nada mudou. O trabalho dos catarinas, obviamente, não pode ser associado à extorsão, mas também envolve aquele jeitinho diante de uma lei ou medida sem vontade política.

O cadastro representa, mais uma vez, a medida pontual para o problema social crônico. Não se debatem projetos que envolvem essas pessoas, possibilitem renda ou amenizem as condições de vida delas. Ou, por exemplo, ações de infra-estrutura para reduzir a desigualdade social e financeira entre áreas de Santos. Os flanelinhas em torno do Cemitério do Paquetá residem em cortiços, em moradias insalubres. Muitos estão desempregados e não têm qualificação para uma mudança social de curto prazo. Por vezes, as moedas dos motoristas pagam a próxima refeição.

Os guardadores de carro são vistos como causa, e não como consequência de um processo de desenvolvimento sem planejamento para todos os grupos sociais. Os flanelinhas viraram insetos na paisagem e, para combatê-los, medidas que parecem aspirinas receitadas a um doente terminal.

A professora deu sorte na virada do ano! Voltou três horas depois e o carro estava intacto. O guardador? Desapareceu como o ano anterior. Ela preferiu não tocar no assunto, já que o estacionamento saiu de graça.

Comentários

Anônimo disse…
Constatamos que o aumento do número de pessoas que fazem disso um "trabalho" aumenta. Vejo um senhor há mais de dez anos "trabalhando" nas proximidades da prefeitura de São Vicente. Pagamos impostos, pagamos para estacionar em áreas regulamentadas...Pagamos impostos para que sejam realizadas ações para solução dos problemas sociais... Pagamos e o que recebemos? O que as pessoas nessas condições recebem? O poder público não consegue dar conta por quê?