A "escola para gays"

A diversidade – em todos os níveis – se transformou em tema recorrente na agenda pública internacional. O assunto é inerente ao pacote contra a intolerância, valor que se faz presente em todos os conflitos, sem importar a escala e alcance dos choques.

A diversidade sexual, no Brasil, funciona quase como um ponto cego neste debate público, no qual se fala com timidez e polidez, exceto quando a violência física e psicológica, acompanhada dos estereótipos, é escandalosa no noticiário de TV.

A criação de uma escola voltada para o público LGTB (lésbicas, gays, transexuais e bissexuais) reacendeu – de forma discreta – a discussão sobre o assunto, principalmente na Internet. A instituição, que nasceu a partir de uma parceria entre Ministério da Cultura, Governo Estadual e a organização não-governamental Grupo E-Jovem, vai funcionar em Campinas a partir de março e terá cursos na área cultural.

Os alunos, de 12 a 20 anos, poderão escolher entre artes gráficas (literatura e produção de revistas e fanzines), cênicas (teatro, cinema e webTV), além de música, dança e performance de drag queen. A proposta da escola é atender não apenas o público daquela região, mas também alunos da Baixada Santista e Grande São Paulo.

O projeto para a implantação da escola foi selecionado pelo Ministério e recebeu verba de R$ 180 mil. A parceria tem prazo inicial de três anos. A escola, com inscrições abertas a partir de janeiro, terá – em princípio – 20 vagas, com possibilidade de crescimento para 60 alunos. Heterossexuais também podem se inscrever. As aulas são gratuitas.

A iniciativa, aparentemente, é inédita. O que importa é o debate que deverá provocar, dentro e fora dos grupos segmentados. Foi o que ocorreu nos Estados Unidos, quando abriu a Harvey Milk School, no bairro de Greenwich, em Nova Iorque. A escola, inserida na rede de ensino público local, começou a funcionar em março de 2009 e homenageia o ativista nova-iorquino, morto a tiros em São Francisco nos anos 70. O personagem Harvey Milk deu o Oscar para Sean Penn em 2009.



A abertura de uma “escola para gays” aponta – em primeiro lugar – para a fragilidade do debate no país. Mal conseguimos sair da reprodução dos rótulos, dos carimbos sociais e das associações pejorativas feitas aos não heterossexuais. Ainda é comum, em uma sociedade que se considera democrática, livre e moderna, a conexão da homossexualidade a doenças, falta de caráter, inferioridade mental, más companhias, entre outros termos mais pesados.

A discussão pública não consegue ultrapassar os limites do concreto e penetrar no campo da abstração. É quase impossível testemunhar uma conversa sobre comportamento sexual pela perspectiva da cultura – seja até pelo consumo de mercadorias específicas - ou de valores, como a diversidade. Para muitos, soa como sinal de fraqueza, de misericórdia, distante da ideia mais ampla de civilização, de liberdade, de senso de coletividade e de cidadania.

Na onda do politicamente correto, esconde-se o paradoxo da postura presente na cultura brasileira, de forma geral. Na vida pública, a maioria reconhece a necessidade de redução do preconceito. Admite que a homofobia se trata de um obstáculo social grave, que merece até criminalização.

Por exemplo: o Brasil realiza a maior parada gay do planeta, na cidade de São Paulo. A última, em 2009, reuniu cerca de três milhões de pessoas. São Vicente, no litoral do Estado, consegue realizar uma parada há cinco anos. Estes eventos recebem apoio público, inclusive da sociedade civil.



Parte da mesma sociedade que aceita a reunião pública de gays numa tarde de festa e reivindicação se mostra chocada com o óbvio: a homofobia. A homofobia é vista com a hipocrisia da surpresa, como se fosse uma novidade instantânea. Parece a imagem daquela tia chata – que todos temos – que põe a mão na boca, horrorizada com o beijo que a filha de 20 anos deu no namorado no portão de casa. Faz cara de quem nunca tinha percebido as mudanças a sua volta, na rotina e no corpo da filha.

O desenho muda de cor na vida privada. Filhos que não se enquadram na heterossexualidade são escondidos em casa. Ou enviados para cursos e atividades extra-curriculares para machos. Ou freqüentam cursos da linha da etiqueta para adquirirem feminilidade. Ou são encorajados a arrumar as namoradas(os)-de-fachada. Ou serão curados pelo pai e parentes com uma boa surra. Fora os incidentes na escola. Fora a discriminação no ambiente de trabalho. Fora os olhares reprovadores e o silêncio punitivo.

Para se justificar, surgem os argumentos genéricos, muitos parecidos quando se fala sobre outras formas de discriminação.

- Ah, eu tenho um amigo gay.

- Ah, meu primo de terceiro grau, que mora a 1000 quilômetros daqui, é gay. Tenho parentes homossexuais. Como poderia ser preconceituoso?

A escola em Campinas nasce com o propósito – evidente – de combater a discriminação sexual. Este tipo de instituição serve para esfregar na nossa cara como somos uma sociedade moralista, excludente e violenta. E indica como a escola brasileira sempre foi – e será por muito tempo – uma instituição reprodutora, quando não incentivadora, de valores discriminatórios.

Sempre desconfiei da política de inclusão. Incluir com o estigma do lado, numa simbiose doentia. Reforçam-se – direta ou veladamente – as diferenças, a condição de suposta anormalidade diante do grupo que controla as ações, políticas e doutrinas vigentes.

Na outra ponta, temo que a escola em Campinas cultive ainda mais o preconceito e os ataques contra a diversidade. Será fácil apontar o dedo e indicar que a instituição é um processo auto-excludente? A escola não seria a formação de um gueto e realimentaria o ódio dos homofóbicos e o desprezo (disfarçado de indiferença) dos hipócritas?

A imprevisibilidade das respostas está além da controvérsia inicial, do reforço de opiniões. Neste momento, a escola servirá como combustível para a cristalização das posturas públicas enraizadas há anos. E não é nelas que devemos nos concentrar. A questão é aguardar pelas conseqüências de longo prazo e esperar por mudanças a conta-gotas, com avanços e retrocessos, como vem ocorrendo nas relações com as mulheres e os negros.

Penso que a “escola para gays” – rótulo reforçado pela imprensa e por parte dos divulgadores da ideia – tem que ser vista como um passo para a mudança efetiva de mentalidade, rumo a um nível elevado de tolerância, de compreensão do outro, sem a imposição de crenças, vontades e valores.
Se atingirmos tal patamar, esta escola não terá razão para existir. Morrerá pela inutilidade. E o título deste texto não seria repetido novamente, mesmo que entre aspas.

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Aproveitando o tema, vale a pena assistir ao vídeo “Sem Purpurina – Realidade GLBTT na Baixada Santista”. Trata-se do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), em Jornalismo, das repórteres Lara Finochio, Xenda Amici, Livia Carvalho e Fernanda Balbino. O trabalho, apresentado na Universidade Católica de Santos (UNISANTOS), foi orientado pelo professor André Rittes e é o retrato da luta de grupos contra a discriminação naquela região.

O vídeo foi produzido em 2009, traz depoimentos contundentes e está disponível no You Tube. Veja os links abaixo:

Parte 1 - http://www.youtube.com/watch?v=z_AgsbbmxkU

Parte 2 - http://www.youtube.com/watch?v=sfvOvvs8g0k

Comentários

Bianca Pyl disse…
Professor, eu conheço o trabalho da E- Jovem e acredito que na iniciativa. Mas não concordo com a forma que ela foi divulgada, afinal ninguém vai precisar "declarar sua sexualidade" para fazer a matrícula. O foco tem que ser o combate ao preconceito - tb temo que fique um grupo fechado e isolado, reforçando o preconceito. Mas vamos acompanhar
Bianca Pyl disse…
escrevi um "que" a + no incício do texto, desconsidere.