Irmãs sem fronteiras

O sol ainda não nasceu e é possível avistar duas sombras, em passos ritmados e determinados, a caminhar por um dos calçadões das praias de Santos. Andam lado a lado, conversam pouco, observam demais. São cinco quilômetros de passadas todos os dias. O que começou como recomendação médica transformou-se em prazer e programação matinal.

A convivência solidificou uma amizade iniciada pela religião, que envolveu duas pessoas de lugares diferentes, mas tão semelhantes. Fisicamente, parecem-se apenas na altura. Meros dois centímetros diferenciam as duas caminhantes. As feições denotam a separação étnica de dois continentes. Mas, se uma fala sobre a outra, parece congelada diante de um espelho.

A caminhada termina quando se inicia um novo exercício: a visita diária ao supermercado. Ambas adoram buscar ofertas. Vibram quando o preço da picanha cai, por exemplo. A lata de azeite a R$ 10 vale a fila enorme e a impaciência da caixa. Fazem festa quando verduras e legumes estão mais baratos, telefonam para as amigas, mas jamais fazem um grande estoque. Como ficaria o prazer de procurar novidades nas prateleiras todos os dias?

A relação entre ambas inclui também as aulas de tai-chi chuan duas vezes na semana. Vale mais a higiene mental do que a rivalidade histórica entre chineses e japoneses que talvez impedisse a prática da arte marcial. Deve ser coisa de quem se prende à História! Aliás, isso nem passou pela cabeça delas, pois mais brasileira do que a professora.

Uma ensinou a outra a costurar. A outra mostrou à primeira como fazer a receita de esfiha. Mas é fundamental salientar um ritual. A troca de receitas jamais envolve experimentar o que a amiga cozinha. Ou melhor: nas raríssimas ocasiões em que isso aconteceu, as críticas foram veladas; publicamente, elogios de parte a parte.

Maria Eugênia tem 61 anos, nasceu no Rio Grande do Norte. Migrou para Santos aos 20 e poucos. Trabalhou, casou, teve uma filha, tornou-se avó na cidade. Quer morrer por aqui. Os traços indicam uma típica brasileira, mestiça, que mistura expressões idiomáticas de várias regiões.

Mitio é cinco anos mais velha. Filha de japoneses imigrantes, casou-se, ficou viúva, teve dois filhos, trabalhou e se aposentou em Santos. Morou no Japão no início da década, naquelas viagens de excessivo trabalho para juntar dinheiro e retornar ao Brasil. Um dos filhos, atualmente, mora por lá. O outro, infelizmente, faleceu de rara doença há cinco anos. Ela também pretende ser sepultada na cidade que adotou para caminhar.

Mitio andou com a ideia de retornar à terra de seus pais. Eugênia contra-argumentava com a solidão de uma vida explorada pelo trabalho. Falava para o espelho? Ir ao Rio Grande do Norte? Apenas como visita, como ocorreu há quatro meses.

Felizmente, Mitio abandonou a idéia. De poucas palavras, sabe-se que desistiu de uma questão quando emudece ou desconversa discretamente.

Se não fosse pela aparência, os nomes poderiam ser trocados. Comportamentos e personalidades parecidas. Disciplinadas, teimosas e rigorosas moralmente, ambas são lembradas pela generosidade, pelo convívio terno com parentes e amigos. Valorizam os outros ao mesmo tempo que pouco contam de si, como a rotina delas fosse deveras desinteressante. Jamais pecam pela omissão, mesmo que escolher um lado resulte em críticas ou inimizades duradouras.

Confesso que admiro as duas pela rotina matinal, exceto pelo supermercado. Caminhar antes do sol nascer requer demasiada motivação. É assunto secundário.

Em tempos de relacionamentos líquidos, a amizade de Mitio e Maria Eugênia simboliza a interação entre culturas aparentemente distantes, mas que se complementam e funcionam por pontos de intersecção. Estes pontos, com o tempo, fundem-se e fazem com que a aparência e a origem geográfica não sejam apagadas, mas germinem uma terceira via, como a fusão de duas sombras – diariamente, às seis horas da manhã.

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