O carnívoro ao volante

Conheci, ontem, o Mercado Municipal de São Paulo. Um passeio com jeitão familiar, que realizou desejo antigo, o de saborear o famoso sanduíche de mortadela. Mais importante do que o sonho gastronômico de classe média, a visita representou o ponto que faltava para o nascimento deste texto.

Logo na entrada, uma tenda do Greenpeace era o foco. Jovens ocupavam o corredor de camisas ou jalecos verdes, sorrisos no rosto e palavras na ponta da língua. Sempre fui simpático à entidade e às formas de protesto pelo (nos dois sentidos!) planeta. A questão ambiental é vista como oportunismo de retóricos de gravata ou como tema submisso à agenda econômico-financeira do universo corporativo.

Uma moça me atendeu educadamente e me explicou as batalhas atuais e os adversários (alimentos transgênicos, escassez de peixes e relação carne-desmatamento) com propriedade e didatismo. Um abaixo-assinado completava o discurso politizado e coerente daquele momento.



Meia hora depois, resolvi observar como as pessoas reagiam diante da abordagem dos jovens ambientalistas. A maioria evitava contato visual e seguia em frente, rumo aos desejos culinários e de consumo. Dos que paravam, alguns fingiam literalmente prestar atenção, loucos para seguir o destino do grupo anterior, enquanto outros engatavam uma boa conversa sobre questões pertinentes da agenda ambiental nacional e internacional.

Vale a pena uma tenda no Mercado Municipal de São Paulo? Qual será o impacto diante da vida das pessoas que apanharam o folheto com explicações sobre os problemas que envolvem o Greenpeace? Elas mudarão de atitude? Confirmarão teses? Pensarão a respeito do problema? Farão algo em seu cotidiano?

O trabalho dos camisas verdes é fundamental. O exercício de contestação com efeitos midiáticos mais a conversa miúda – individualizada – em locais públicos podem expor a agenda pública em torno do meio ambiente. Pode ser o combustível para ultrapassar as barreiras políticas, econômicas e eleitoreiras que empurram o tema para a rabeira das rodas de discussões. E não falo daquelas conversas de boutique, em que se vomitam medidas hipócritas para parecer moderninho ou descolado.

O problema, no entanto, passa pela ausência de atitude das figuras públicas. Eles são os donos da bola (ou seria um globo?) e das canetas que assinam o futuro próximo. Podemos perceber a inércia estatal, por exemplo, e de nós mesmos diante das campanhas que ocorreram em um passado recente. Pensei em duas delas: o Dia Mundial sem Carro e a Segunda-feira sem Carne.



No primeiro caso, uma terça-feira, o dia pareceu o mesmo. Com os mesmos problemas urbanos. O trânsito estava congestionado, com os motoristas traduzindo sua fúria e sua pressa nas buzinas e nos faróis altos. Os ônibus, carregados de gente espremida como bichos, usaram o tamanho para se impor em avenidas que encolhem a cada financiamento nas concessionárias.

No mundo movido a petróleo, o combustível orgânico via pedais não tem espaço. São manchas que alteram a paisagem. Incomodam porque não poluem. Perturbam porque não fazem barulho. Atrapalham porque são lentas perante a mentalidade do progresso.

Não parecia o Dia Mundial Sem Carro. Confesso que, inclusive por não ter automóvel, havia me esquecido da data. Mas me fez lembrar uma campanha realizada na cidade de Santos, onde moro. Era o Mutirão da Carona. Até a própria Companhia de Engenharia de Tráfego reconheceu o fracasso da iniciativa, pois os carros circulavam na mesma quantidade, velocidade e conduzidos pelos mesmos neuróticos, acompanhados de bancos vazios ou com objetos inanimados.



O protesto contra os automóveis é – obviamente - importante, assim como outras manifestações pela coletividade, como a Bicicletada, realizada em vários lugares do planeta. São instrumentos nos quais a sociedade civil retrata seu descontentamento com uma série de questões que envolvem políticas públicas.

O mundo é dos carros. Cada vez mais veículos unitários. Símbolos do consumo como prática individualizada e individualizante. Outro dia, conversava com um taxista, sujeito que vive do trânsito e para o trânsito. Para puxar conversa, basta criticar de leve um micro-congestionamento.

No alto da sabedoria rodoviária de quem passa 12, 14 horas diárias entre semáforos (mais de 300 na cidade) e passageiros com pressa sem destino definido, o motorista diagnosticou um dos sintomas da doença: mais carros, menos ocupantes. Veículos preocupados com conforto e espaço interno, para quem? Cachorros, sacolas, tranqueiras e afins. Se celular e computador são objetos individuais, por que os carros não seriam?

Às segundas, os carnívoros continuam no poder. A campanha pela redução do consumo de carne segue o mesmo caminho: permanecer restrita às entidades ambientais ou aos grupos anteriormente simpáticos à causa. A matriz alimentar atual são os produtos industrializados e, por influências culturais, nos tornamos ainda mais carnívoros. Seja uma carne saudável ou aquela que traz de brinde a lista de substâncias químicas para criar a aparência saudável!



A campanha não afeta nem os donos de churrascarias, pois a segunda-feira é o dia de folga, depois de um final de semana regado à picanha e maminha no alho.

Enquanto não houver representatividade política, dentro dos instrumentos de poder, sinto que veremos o discurso ambiental amarrado aos ambientalistas. É preciso entrar nas rodas de poder para alterar leis, influenciar grupos e ter instrumentos de pressão.

Como disse um cientista político na TV recentemente, o cidadão pobre é o fator de desequilíbrio numa eleição. Dá para convencer – até 2010 - alguém que mal come carne, precisa lutar pela próxima refeição e anda de ônibus que o problema ambiental é parte da vida dele?

Comentários

Cassio Freitas disse…
É, Infelizmente dá sim!
E mesmo não comendo carne sempre e nem tendo um carro, essa população acaba indo "na onda" dos outros [os ricos e politizados] que nem sempre acreditam nos ideais que defendem e até fingem se importar com as questões ambientais...
Todo mundo segue as tendências de pseudo-preocupações. Meio ambiente está na moda! :D
Unknown disse…
Professor, que legal que tenha topado conversar com a moça! Então, esta abordagem utilizada pelo Greenpeace é comprovadamente uma das mais eficazes para a divulgação de idéias. Hoje em dia é copiada por várias ONGs, inclusive uma da qual faço parte (VEDDAS). E é muito simples: consiste em conversar, olho no olho, e passar informações, sempre de forma simpática (por mais que venham algumas provocações - ah, e como elas vêm...)

Posso falar pela experiência do VEDDAS que quase todas as pessoas abordadas não são vegetarianas, bem como nunca refletiram sobre o assunto.

E acredita que vários indivíduos depois retornam, ou enviam emails, contando que esta abordagem foi a semente que os fez optar pelo vegetarianismo? Funciona mesmo...

Lógico que não temos a utopia de transformar todo mundo em vegetariano. Mas pelo menos ajudamos a derrubar o prenconceito de que vegetariano é aquele estranho e triste ser anêmico comedor de alface ;)