Michael, os índios e o mendigo na Paulista

Dormia o sono dos deuses, daqueles mais profundos, alheio ao sons desconfortáveis dos que visitam sua casa ao ar livre. Repousava na cama dos desprezados. De concreto, à luz da tarde paulistana. O sono marginal numa tarde de domingo, numa calçada da Avenida Paulista, o mantinha invisível, incomunicável, imperturbável para os que passam e nunca lhe dirigem palavra. O homem de 40 anos – sem nome ou história para os outros – é a mancha na paisagem, banalizada no cotidiano de pressa, buzinas e stress.

No domingo à tarde, ele continuou invisível. A mudança na paisagem se deu a um metro do corpo esticado, descalço, ao lado de um latão de lixo. A maioria da platéia ali presente permanecia cega em relação a ele. Poucos abaixavam a cabeça e apenas confirmavam a rotina daquela natureza morta. O lamento ou a misericórdia em silêncio!

Sobre o latão, a diferença no cenário. Corpo jovem, de cabelos coloridos e roupas chamativas. O contraste para exatamente atrair os olhares, com a pose de quem finge não se importar. O rapaz dançava como se a Avenida Paulista fosse sua casa noturna. Os outros que assumissem o papel de coadjuvante para lotar a boate.

Mas havia concorrência. Garotos um pouco mais velhos, de 20 anos, corriam pela faixa de pedestres. Ocupavam o corredor de ônibus. Nas mãos, posters do recém-falecido. No peito, coberto por camisetas pretas, a foto de Michael Jackson, em vários tons e momentos da carreira.

Outros expeliam seu amor, perplexidade e luto (ou admiração, talvez tudo junto!) no figurino completo. Buscavam ser a imagem do sósia perfeito. Dançavam para os motoristas quando o semáforo ganhava a cor envergonhada. Na Paulista, prevalece muitas vezes a timidez e o temor de não olhar para os lados. Naquele minuto com o carro parado, tornou-se impossível para qualquer motorista ignorar o gingado de quem treinou por meses para se aproximar da obra do ídolo.

Um dos clones atingiu o máximo de sua criação. Impedido de dançar pelo assédio de turistas – brasileiros e estrangeiros -, o garoto distribuía autógrafos como se ressuscitasse o artista que amava. Sorria como um frankstein consciente de que tomava o lugar de seu criador.

Mesmo frenéticos, estes personagens não significavam o foco dos holofotes para quem desfilava na avenida. O que as paralisava era o grupo de 20 pessoas que, em roda, vivia a catarse coletiva de um certo ritual de morte. Todos, fantasiados ou não, de idade variadas, dançavam e cantavam músicas de Michael Jackson, muitos com as mãos para o alto, de olhos fechados, com feições de choro.

O culto desta religião instântanea envolvia exorcismos no meio da roda, no qual se expulsava demônios pelo swing, pelos soluços e pelo som dos sucessos repetidos no auge e nos escandâlos da carreira do ídolo. A cerimônia era realimentada por caixas acústicas e microfones, abertos a todos e alugados a R$ 300 de um grupos de índios equatorianos.

Ao contrário do velório de corpo presente (?) na TV, o ritual da avenida Paulista não foi organizado – apenas propagado pela Internet - nem seguiu programação milimetricamente pré-definida. O improviso deste micro-universo, numa esquina movimentada de São Paulo, abria mão de identidades e importância social. Apenas desejava a experiência coletiva.

Aquela esquina da Avenida Paulista esvaziou em uma hora. No ar, canções andinas, dos tais índios equatorianos, com trajes típicos e dispostos a vender cds e dvds de suas criações. Sem glamour ou fama. Ao lado deles, o mendigo permanecia invísivel à troca cultural, retido no próprio sono da tarde de domingo.

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