O romance rumo ao interior

O psicanalista Contardo Calligaris tem milhares de leitores todas as quintas-feiras, desde 1999, no jornal Folha de S.Paulo. Autor de uma dúzia de livros, em três idiomas, ele lançou há dois meses e meio o primeiro romance, “O Conto do Amor” (Companhia das Letras), hoje na 5º edição.

O psicanalista esteve recentemente no Sesc, em Santos, para participar do projeto Conversatório, que aproxima leitores e autores por meio de um bate-papo de duas horas. Além do romance, Calligaris lançou também “Quinta Coluna”, obra que reúne 101 crônicas publicadas na Folha. Trata-se do segundo livro de coletâneas, o primeiro organizado por ele. “Não tive um critério definido, mas o interessante é que redescobri vários textos.”

Na entrevista abaixo, Contardo Calligaris reflete sobre seus textos, aspectos do romance, como a relação com o pai, e o contato com os leitores, seja semanalmente ou pela literatura.

Boqueirão: Na coluna “Volta a Paraty”, você fala do livro interior, a fusão de todas as leituras – completas ou não - de um indivíduo. Eu me identifiquei com este texto, principalmente pelo fato de não terminar a leitura de muitos livros. O conceito de livro interior tem relação com o romance “O Conto do Amor”?
Contardo Calligaris: O romance não é o meu livro interior, que não saberia escrever. É o livro da vida inteira, que ninguém vai conseguir escrever. Mas que o romance faça parte do meu livro interior, não tenho dúvida. Agora, a razão pela qual acho que escrever ficção é mais relevante do que escrever ensaio é porque a ficção traz forma ao livro interior dos leitores. E pouco importa que seja lido integralmente ou aos pedaços. Isso é uma maneira de tocar o outro que, no fundo, me interessa mais do que transmitir minhas idéias. É mais próximo quando permite que o outro se transforme, como em um trabalho psicoterapêutico. É permitir um trabalho de transformação interior.



Boqueirão: Você conseguiu deixar de ser psicanalista na hora de escrever ficção?
Calligaris: Não tinha grande preocupação em me amputar daquele pedaço. Sou psicanalista há 35 anos, nove horas e meia por dia, cinco dias por semana. Nunca me aconteceu da atividade psicanalítica invadir minha vida. Nunca aconteceu de fazer uma interpretação numa briga amorosa. Numa briga amorosa, briga-se! (risos) Não vem o lado de psicanalista fora do contexto. É claro que a psicanálise é uma parte relevante da minha experiência de vida, mas não a única. Gosto de viajar dentro de cada cidade que vivo. Tenho meu lado Bukowski. Moro nos Jardins, mas freqüento a Zona Leste de São Paulo, não só como antropólogo.

Boqueirão: E o que te acrescenta?
Calligaris: À vida. Eu gosto das pessoas. Gosto de freqüentar barzinhos embaixo da favela vertical da rua Paim, em São Paulo. É claro que, se a uma certa hora vejo que a cachaça está um pouco demais e vai sair facada, vou embora. Ninguém é herói. Gosto porque a fala é diferente, o contato é diferente. Não tenho medo ou inibição.

Boqueirão: Você disse que o próximo romance será ambientado em São Paulo, inclusive no Largo da Batata (região citada na resposta anterior). Em que pé está?
Calligaris: Naquele pé (risos)! Eu levo muito tempo na concepção da trama. Não me aventuro a escrever sem saber porque fulano vai encontrar sicrano, onde, de que forma. Tenho que ter a trama bem clara na cabeça, totalmente. Depois, escrevo. Fazer o primeiro esboço, em 15 dias de férias, num lugar sem Internet, é fácil. O primeiro romance foi escrito do jeito que gosto. No meu romance, não tem o autor que interfere na vida do narrador. O protagonista é quem escreve. Não tem recursos de narrativa de terceira pessoa.

Boqueirão: Você teve que se policiar, pois a coluna na Folha de S.Paulo é escrita, muitas vezes, em terceira pessoa?
Calligaris: Não tive que me policiar porque é a maneira que gosto de escrever. Isso me dá uma série de problemas técnicos no segundo romance porque tem coisas que gostaria que o leitor soubesse. Talvez inclua dois ou três narradores.

Boqueirão: Você disse no programa Roda Viva, da TV Cultura, que publicar um romance te expôs como nunca. Isso tem a ver com a idéia de que a vida dos autores interessa tanto quanto a obra?
Calligaris: Não sei se vale para todo mundo. Mas sou uma figura pública e ainda mais um psicanalista, que escuta a vida dos outros e nunca se sabe da dele. É uma espécie de vingança (risos). O primeiro capítulo de O Conto do Amor é totalmente autobiográfico. Se colocar esta pergunta para Philip Roth ou John Updike, autores que adoro, claro que um romance é, em parte, autobiográfico.

Boqueirão: Tirando o primeiro capítulo, qual é o papel da memória na tua obra?
Calligaris: Sem dúvida, é grande. Há memória histórica, de lugares, de emoções, como os anos 70 na Itália. O livro anterior também é um livro da memória, assim como a memória é rearranjada em cada romance. Mas, escrevendo o primeiro capítulo é que o romance se tornou necessário. Como se eu devolvesse a vida ao meu pai de maneira que tinha que encontrar um jeito de reinventá-lo em vida, de reinventar um diálogo com ele que não é mais possível. A maneira de fazer isso foi passar um ano escrevendo um capítulo da vida dele.

Boqueirão: Escrever o romance foi uma forma de acertar as contas com teu pai?
Calligaris: Sim, se é que dá para acertar as contas com meu pai. Mas sempre foram acertadas. Adorava ele. Quando morava em Boston (EUA), tinha uma doméstica russa que dizia ter poderes mediúnicos. Um dia ela chegou apavorada: - Doctor! Doctor! Seu pai está na biblioteca. Ela sabia que meu pai tinha morrido. Daí, eu fui lá e queria falar com ele, mas não via nada. Ela disse: - Ele está lá, sentado! Perguntei: - O que posso fazer para falar com ele? A doméstica respondeu: - Nada, mas ele está sorrindo. Eu disse: - Então, está tudo legal! (risos)

Boqueirão: O livro é a tua concepção de amor?
Calligaris: Fatalmente sim, inclusive porque tive experiência semelhante. (risos) O que mais impressionou os leitores foi a qualidade do respeito recíproco entre os protagonistas, e não a distância entre eles. Teve uma leitora que me escreveu: - Uma mulher como a Nicoletta não existe. Eu respondi: - Justamente para encontrá-la que escrevi este romance. (risos)

Boqueirão: Você tinha a expectativa do romance ter cinco edições em dois meses e meio?
Calligaris: Expectativa não é a palavra certa! Escrevi para isto, não no sentido de querer vender, mas porque me interessa contar uma história que pegue meus leitores.

Boqueirão: No Orkut, há comunidades sobre você e seus textos. Certa vez, houve um debate sobre a confusão entre as pessoas que desejavam ser pacientes somente para te conhecer. Como você enxerga a fusão entre o psicanalista e uma figura pop?
Calligaris: É pop a partir de textos. Não subo em um palco. Pode acontecer que alguém marque uma hora no meu consultório, embora seja um pouco curioso. Mas quando se trata de começar um processo terapêutico e não for importante para ele ... ele vai embora. Acho complicado alguém fazer terapia por tietagem.

Boqueirão: A coluna na Folha de S.Paulo funciona, de certa forma, como terapia? Reações de leitores?
Calligaris: Não sei se terapia é a palavra exata, mas pode funcionar como algo deste tipo. Escrevo alguma coisa e a mulher, depois de uma briga com o marido, recorta o texto e diz:- Olha aqui! Exatamente o que te falei! O texto de um psicanalista é revestido de uma autoridade. Isso vale para qualquer texto. O lado terapêutico seria outro, dando uma resposta séria. Minha coluna ideal deve ter três pontos: atualidade, um evento e um detalhe de vida concreta que se relaciona com os outros. São elementos do artesanato da coluna. Importante para mim é conseguir dizer algo que coloque um pouco em crise o que os leitores pensam sobre o assunto. Levar o leitor a dizer que poderia pensar diferente, colocando-o em contradição consigo mesmo. Escrever uma coluna para o cara discordar ou concordar não me interessa.

Boqueirão: Você se preocupa com a idéia de moralismo quando escreve?
Calligaris: Preocupo-me contra, o tempo inteiro. Estou em guerra contra o moralismo. Ser moralista? É difícil!

Boqueirão: O homem contemporâneo precisa de terapia?
Calligaris: Sou psicanalista, me reconheço como freudiano, mas tenho um monte de coisas construtivistas, cognitivistas e comportamentalistas que são dadas na minha maneira de responder ao paciente. Não acho escândalo nenhum. A maior responsabilidade de qualquer psicoterapeuta é com seus pacientes, e não com a fidelidade abstrata à doutrina em que se formou. Acho que a psicoterapia está muito longe do fim de sua longa carreira.

Boqueirão: Você fez mestrado, doutorado e deu aulas em universidades na Europa e nos Estados Unidos. Você se interessa atualmente pela vida acadêmica?
Calligaris: Apenas como leitor. Não me quero mais escrever artigos ou ensaios acadêmicos que interessam aos 14 colegas que não vão ler. A coluna, certamente, me ensinou a escrever. Não escrevo para parecer inteligente, mas para quem tem interesse em ler. No fundo, foi um longo desvio para chegar à ficção.

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