A morte engraçada

Os ingredientes remontam a uma história de mistério. Um religioso teria desaparecido no mar. Uma aventura exótica. Quem seria o Bartolomeu de Gusmão do século XXI, com o perdão da liberdade poética? O que aconteceu com ele? Por que se acidentou? Simples ambição por quebra de recordes?

A rota de outro caso policial ganhou inesperado desvio quando o desaparecimento do padre Adeli de Carli, de 41 anos, na costa de Santa Catarina, adquiriu contornos de comédia-pastelão de segunda categoria. Pelo menos foi a leitura feita por muitos veículos de comunicação. Risos também se tornaram comuns em conversas cotidianas, diferente de outras tragédias humanas que entopem o noticiário. Especulações sobre o desfecho soam naturais, como alimento de tubarões e piadinhas semelhantes.

A curiosidade pode ser associada ao fascínio do homem pela morte, inclusive pelo fim de si mesmo. No mundo contemporâneo, indivíduos passam boa parte da vida – ainda mais em tempos de ditadura estética unida ao acelerado avanço científico-tecnológico – sonhando em retardá-la. Trocam-se pedaços da própria identidade por adicionais suspiros de tempo.

Todas as culturas simbolizam, preocupam-se ou vangloriam a morte. Os egípcios antigos, por exemplo, movimentavam boa parte da rotina em torno da vida após o falecimento.

Na Idade Media, uma vida feliz no além era garantida por polpudas doações de terras e metais preciosos aos intermediários, aqueles supostamente predestinados a assegurar uma vaga ao lado de São Pedro ou enviar o destinatário para um endereço mais quente.

Muitas etnias indígenas, por exemplo, se apoiavam em compostos alcoólicos para receber orientações dos ancestrais na cura de enfermos desenganados. Os maias sacrificavam escravos aos deuses para garantir proteção e bons dividendos ao longo do ano. Cada cabeça decepada era a morte em troca da vida sã.

A verdade é que o ser humano a teme. A morte ganhou múltiplas representações na cultura pop contemporânea, geralmente negativas. É o homem vestido de preto, carregando uma foice. São os filmes de terror que nos colocam diante da morte promovida por um louco mascarado ou morador de uma localidade inóspita. É a imagem do homem-bomba, simplificado na idéia de martirização em troca de moças virgens.

A morte é certeza de lucro. O sepultamento do cantor sertanejo Leandro serviu como divisor de águas para o mercado segmentado. No enterro dele, telão com músicas da dupla, helicóptero atirando chuvas de pétalas. A falsa alegria para negar o óbvio, para superar a perda antes do tempo devido. Neste sentido, lembra rituais como “beber o morto”, em regiões do Brasil, ou os banquetes em casas do meio-oeste norte-americano, guardando as proporções.

Além de adquirir planos de sepultamento, uma espécie de kit-enterro similar aos planos de saúde (dependendo da empresa, pode ter a mesma função), é possível atualmente presenciar a levitação de um caixão durante o velório, sob cortina de fumaça gerada por gelo seco. O efeito visual, simbolicamente, conduz o “beneficiado” aos portões do paraíso cristão.

A transformação da morte em um negócio pouco difere do tratamento como espetáculo dado a ela. A morte midiática não é diferente no aspecto de negação do inevitável. No entanto, ganha contornos ficcionais quando a imagem se sobrepõe à importância e ao contexto do conteúdo que a cerca.

A fragmentação e a superficialidade na abordagem minimizam a presença da morte. O temor disfarça-se. A distorção a rebaixa à mera coadjuvante. São novas vítimas na Guerra do Iraque ou na Faixa de Gaza, distâncias que acalmam o horror do qual o ser humano se alimenta.

O noticiário e os programas de entretenimento convergem em busca de audiência ao notarem que uma criança pode sensibilizar, principalmente se ela for vítima de pais em boas condições financeiras. É fácil: muitos se sentem superiores por chamá-los de assassinos, ao mesmo tempo em que participam da claque ao acender das luzes das câmeras de TV.

A morte perdeu seu valor diante dos filtros do espetáculo e do sensacionalismo. A suposta morte do padre, que viajava amarrado a mil balões de festa com gás hélio, seguiu a ótica do exotismo. O desfecho, com ares ficcionais, subverte a lógica tradicional da perda, da negação, do ritual de luto. Ou até do respeitoso silêncio.

A conseqüência é a desvalorização do próprio caso em si, representado pela redução de importância de fatores secundários que contextualizariam a história. Motivações, passado, relações sociais e questões de segurança viraram rodapé de reportagem sobre o “maluco da semana” a morrer por uma causa irreverente, irrelevante.

No Rio de Janeiro, um carro foi queimado e abandonado na Linha Vermelha há cerca de dois anos. No veículo, duas vítimas carbonizadas, efeitos colaterais da guerra entre traficantes. As cabeças delas estavam no capô do carro. O que deveria ser o horror se transformou em programa turístico. Muitos pararam para ver o ocorrido até que um sujeito tomou coragem para se fotografar via celular ao lado das cabeças decapitadas. Daí em diante, souvenires à vontade. Quem morreu? Importa?

Neste sentido, a morte-espetáculo desumaniza. O padre, em breve, não terá mais nome, origem ou local de morte, assim como aconteceu com os assassinados pelo tráfico. Saberemos apenas que um religioso morreu numa aventura sem propósitos, no julgamento dos meios de comunicação. E espera-se na sala de estar, diante da TV, pela próxima diversão do trem fantasma (ou da montanha-russa). Um espetáculo no qual atores e público morreram, sem chance de negação. Depende da percepção dos envolvidos.

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