Mate o Carnaval por R$ 70 mil

São Vicente cultiva uma relação estranha com a história e com a cultura. De cara, prefere assumir um erro histórico para se valorizar quando se intitula “a primeira cidade do Brasil”. Na verdade, é a primeira vila. O título correto pertence a Salvador (BA).
Um dos poucos símbolos do passado colonial, base do enaltecimento contemporâneo da cidade por sua história, é um emaranhado de mato e entulho, cercado por grades. O Porto das Naus, nas proximidades da Ponte Pênsil, seria o ponto de atracação da frota de Martim Afonso de Souza em 1532. Há projetos de pesquisa científica, elaborados por acadêmicos de renome internacional, o que inclui escavações em arqueologia subaquática, que jamais tiveram a devida atenção por sucessivos governos. Acabaram derrotados pelas gavetas da burocracia.
A exceção parece ser a Encenação da Chegada de Martim Afonso de Souza, que acontece anualmente, no mês de janeiro, na praia do Gonzaguinha. Com investimentos agressivos, o que envolve a iniciativa privada, o espetáculo atrai cobertura maciça da mídia local e registros da grande imprensa. O evento recebe dezenas de milhares de espectadores, conta com centenas de figurantes locais e é capitaneado por atores de visibilidade na televisão (leiam-se novelas!). Neste sentido, a Encenação, ao glamourizar o início do período colonial, contorna a história e focaliza o entretenimento. Não há mal nisso, desde que fique cristalina a opção dramatúrgica.
Por um lado, São Vicente tenta, a seu modo, explorar turisticamente uma história de longo prazo. Em parte, pela limitação de registros históricos para aprofundar seu passado embrionário. Em parte, pela incompetência de gestões há seculares que se encarregaram de enterrar a história, inclusive em termos documentais, considerada secundária diante do “progresso”. Por outro lado, São Vicente segue a linha de outros vizinhos e lida mal com pontos da cultura popular, se focalizarmos a maior festa do país: o Carnaval.
Na última década, a realização do desfile de escolas de samba foi conflituosa. O evento foi extinto, ressuscitado e agora morto novamente. A causa é a de sempre: mau gerenciamento de dinheiro, fruto da dependência crônica das escolas junto ao Poder Público, este observando com os olhos políticos, e do amadorismo das próprias agremiações na organização e na união entre si.
Em 2006, a Prefeitura liberou R$ 440 mil para a realização do desfile no ano seguinte. O dinheiro é curto, porém a administração não pode ser a única financiadora da festa. Basta olhar para os grandes carnavais do país, com a rentabilidade exposta em cada abadá ou em cada camarote repleto de celebridades.
O problema é que, mesmo com o recurso curto, houve mau gerenciamento. Cerca de R$ 70 mil, segundo o Ministério Público, foram justificados pelas escolas com gastos que pouco ou nada tem a ver com a organização de um desfile. Bebidas alcoólicas e comida, por exemplo. O resultado é que Prefeitura e MP fizeram um Termo de Ajustamento de Conduta, no qual a administração se compromete a não liberar recursos para o desfile de 2008 em função do nebuloso uso do dinheiro. Como as escolas não possuem estrutura para buscar verbas em outras instâncias, a cidade fica sem o desfile. Bandas e blocos são a velha solução de emergência para o Carnaval não passar em branco.
São Vicente poderia ter aprendido com os erros do vizinho de ilha. Santos acabou com o desfile, matou a Dona Dorotéia e restringiu o cortejo de blocos pelos bairros. Nos dois últimos casos, diante da alegação de violência, adotou-se a estratégia tradicional: extinguir ou restringir ao invés de investir em segurança. No caso do desfile das escolas de samba, houve a retomada após negociações entre a Prefeitura de Santos e as agremiações.
São Vicente precisa repensar o modelo de Carnaval para o próximo ano. Há uma proposta de mudança legislativa, mas obviamente limitada à retórica. A curto prazo, porém, ficam três perguntas:
1) Se os R$ 70 mil não foram justificados adequadamente, o dinheiro será devolvido aos cofres públicos? Quem os gastou será responsabilizado?
2) A administração municipal estuda modificar a legislação para o Carnaval em 2009. Por que isso não foi feito para este ano?
3) Por que as escolas de samba não aproveitam o episódio e adotam um esquema profissional para a organização do evento, tornando as escolas menos dependentes da Prefeitura, pelo menos na captação de patrocinadores?
A cultura e a história da primeira Vila do Brasil agradeceriam se a festa mais popular não agonizasse por tão baixo valor diante do tamanho da cidade.

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