Os crimes de Watson

O britânico James Watson, de 79 anos, é um cientista brilhante, um dos biólogos mais renomados da atualidade. Ele e outros colegas ganharam o Prêmio Nobel de Medicina em 1963 por terem descoberto a estrutura do DNA nove anos antes. A descoberta, como se sabe, gerou benefícios para inúmeras áreas do conhecimento, desde a própria medicina até a criminologia. Ainda na ativa, Watson dava conferências pelo mundo e trabalhava no prestigiado Laboratório de Cold Spring Harbor.
Na semana passada, “Honest Jim”, apelido do cientista por causa de posições polêmicas, se aposentou. Perdeu o emprego e teve duas conferências canceladas pela Universidade de Edimburgo. O motivo foi uma entrevista concedida em 14 de outubro à revista dominical do jornal inglês “Sunday Times”, em função do livro “Avoid boring people” (Evite pessoas chatas), lançado recentemente.
Na entrevista, James Watson afirmou, entre outras declarações racistas, que se sentia pessimista sobre o futuro da África porque as políticas públicas para o continente se baseavam na premissa de que o nível de inteligência dos negros era idêntico ao dos brancos. E disse que todos os testes demonstravam uma superioridade branca.
O cientista britânico provocou uma enxurrada de artigos acadêmicos e de imprensa pelo mundo, a maioria reprovando seu pensamento. Poucos acadêmicos, como o cientista político norte-americano Charles Murray, do conservador American Enterprise Institute, o defenderam.
Descontando o show de mídia que uma declaração como essa produz, é fundamental que se leve em consideração o fato de que James Watson cometeu alguns crimes intelectuais, que vão desde a descontextualização histórica até o reducionismo cultural.
Em primeiro lugar, a África – como modelo continental único – é uma falácia resultante do projeto colonizador europeu. Desta ideologia dos séculos XIX e XX, surgiu a imagem de que a África se resume a um território selvagem, inóspito, caótico, primitivo, miserável, violento e doente, desconsiderando a multiplicidade cultural e étnica do continente, composto hoje por 53 países; aliás, a maioria demarcados pelos colonizadores europeus.
Esta imagem de continente único também alimenta a idéia de uma região aistórica, que só passou a fazer parte do mapa após a presença mais constante dos europeus a partir do período das grandes navegações, na segunda metade do século XV. Neste sentido, Watson foi reducionista, pois tentou enquadrar um continente múltiplo em apenas uma variável, a cor da pele, para defini-lo como inferior.
O cientista britânico, com suas declarações, também cometeu um segundo equívoco. Ressuscitou a ideologia científica da Escola Racialista européia de meados do século XIX, que misturava correntes de pensamento como positivismo e evolucionismo, além de adaptar o darwinismo para as relações sociais. Este conjunto de conceitos levou às políticas de eugenia e a posicionamentos bizarros diante da miscigenação.
O Brasil, por exemplo, entre 1870 e 1930, foi visitado constantemente por naturalistas e outros cientistas que enxergavam a mestiçagem como um fator exótico, mas também como elemento de degeneração. Daí, surgiram sucessivas distorções como propostas de reprodução em massa para branquear a população brasileira e pesquisas na área de medicina e criminologia, visando provar que negros (lembrem-se de que saíamos de séculos de regime escravocrata) eram indivíduos mais propensos ao crime.
Essa visão gerou e/ou fortaleceu uma série de danos à realidade brasileira como a racialização das relações sociais (vide cotas nas universidades) e a aparência como mecanismo de julgamento e definição da etnia do outro (pardos, morenos e outras nomenclaturas).
A perspectiva eugênica do século XIX também serviu de alicerce para a segregação racial nos Estados Unidos no século seguinte. Entre outros casos, as experiências científicas com índios e distribuição de remédios para a população negra, visando testar efeitos colaterais – é claro -, sem avisar a população.
O nazismo é talvez o fruto mais apodrecido deste instrumento de purificação por raça. Mas deve-se salientar que os Estados Unidos adotaram pesquisas semelhantes na mesma época e recuaram diante do quadro de genocídio que se desenhava na Europa no final dos anos 30.
A ciência, infelizmente, consegue – enquanto reprodutora de cenários político-ideológicos – cristalizar teorias que permanecem entranhadas no imaginário social e são utilizadas de acordo com interesses de controle e dominação. O que Watson deveria saber, ou não quis enxergar, é que os próprios cientistas têm sua cota de responsabilidade sobre a frágil associação entre raça e biologia.
Raça não é uma concepção científica, no sentido genético. Trata-se de uma construção social, cultural, com o intuito de estabelecer graus de superioridade e inferioridade entre grupos. Simplificando: é impossível provar – biologicamente – que um grupo racial pode ter mais habilidades do que outro. Até porque um único fator (raça, no caso) é incapaz de fornecer respostas científicas minimamente razoáveis. Além disso, a definição de grupos é feita pelo homem para seu uso e benefício e para poder controlar os outros por características imutáveis, como o tom da pele.
Honestamente, não sei se a aposentadoria de James Watson era necessária. Diante da percepção de um crime intelectual, o cientista britânico se desculpou em dois artigos. Mas tenho certeza de que suas idéias – pelo menos no que se referem às relações pelo critério de raça – caducaram há muito tempo.

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